Um ano após massacres, velhos problemas persistem no sistema prisional brasileiro

Nas primeiras horas do dia 1º de janeiro de 2017, um motim tomou conta Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus. Nas horas seguintes, presos foram decapitados e esquartejados por rivais.

O saldo: 56 mortos. Nos dias que se seguiram, as cenas seriam repetidas em outras unidades prisionais do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte. No total, 125 presos morreram.

A barbárie escancarou o domínio das facções criminosas em diferentes Estados e expôs mais uma vez uma típica mazela do sistema prisional brasileiro: a superlotação. Um ano depois, alguns dos Estados palcos de chacinas ficaram longe de resolver essa questão – em um deles o problema até se agravou.

Medidas para desafogar o sistema avançaram pouco. No período, o Brasil colecionou mais uma marca: a do terceiro país com maior população carcerária, após ultrapassar a Rússia no início de dezembro, segundo dados do Ministério da Justiça.

Agora, apenas os EUA e a China permanecem à frente. Um ano depois dos piores massacres do sistema prisional desde a chacina do Carandiru, o país conta 726.712 presos, segundo o último relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado em dezembro. Destes, 40% (292.450) ainda não foram julgados.

Segundo os dados, o Brasil continua a registrar um déficit total de 358.663 vagas e uma taxa de ocupação média de 197,4% nas prisões em todo o país. Hoje, apenas 7% dos presos (51.235 pessoas) estão em unidades que não registram superlotação.

Na segunda-feira (01/01), a falta de medidas efetivas cobrou mais uma vez a fatura e o país reviveu o trauma de 2017: um novo massacre em um presídio de Goiás deixou pelo menos nove mortos – dois deles foram decapitados. Outros 106 presos fugiram.

Segundo o governo local, apenas cinco agentes guardavam 768 presos. "O conjunto de elementos que contribuem para esses episódios continua intacto e a situação só se agravou. A população prisional só aumentou e a cultura punitiva simplesmente não mudou. Não há iniciativas efetivas para expandir as penas alternativas ou melhorar as condições da população carcerária", afirmou Julita Lemgruber, coordenadora do Centro do Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes e ex-diretora do sistema prisional do Rio de Janeiro.

Alguns avanços e muitos velhos problemas

Palco da chacina que abriu 2018, o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, em Goiás, contabiliza 768 presos na contagem mais recente em apenas 122 vagas. Logo após o massacre, a cúpula da segurança pública de Goiás repetiu o mesmo roteiro de Estados que já foram palcos de massacres: prometeu investir em penas alternativas e realizar mutirões para soltar presos provisórios, construir novas unidades e combater as facções.

Não foi muito diferente do que ocorreu após os massacres do ano passado, quando os governos de Roraima, Amazonas e do Rio Grande do Norte fizeram promessas semelhantes.

Até mesmo o governo Temer se viu obrigado na ocasião a propôr medidas, incluindo um pacote de segurança pública, lançado às pressas pelo então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, que acabaria deixando o cargo pouco depois para assumir uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Observado o exemplo do que ocorreram com as promessas do ano passado, apenas parte das medidas anunciadas pelo governo de Goiás devem sair do papel.

Em Roraima, que contabilizou 33 mortos no início de 2016, o déficit de vagas apenas aumentou, saltando de 1.272 para 1.499. Rio Grande do Norte e Amazonas, que contabilizam 64 e 26 mortos, respectivamente, conseguiram reduzir o déficit, mas não de maneira determinante.

À época registrando a falta de 5.907 vagas, o Amazonas reduziu a diferença para 4.168, segundo o governo local, que também fechou uma das unidades onde ocorreu um dos massacres, a Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa. Já o Rio Grande do Norte viu a carência cair de 3.642 para 3.000. No entanto, outros números e episódios colocam essa melhora em xeque.

Apesar da promessa de mutirões carcerários para analisar e eventualmente soltar presos provisórios, o Amazonas ainda continua a contabilizar 50% da sua população carcerária nessa situação, pouco abaixo dos 56% apontados pelo Infopen em 2016.

No Rio Grande do Norte, o índice chega a 35%, segundo os últimos dados do sistema de informações. Em seu relatório sobre os massacres do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também apontou entre os problemas do sistema prisional amazonense estava a atuação da empresa

Umanizzare Gestão Prisional, contratada pelo governo do estado para administrar os presídios locais. O papel da empresa nos presídios palcos dos massacres recebeu críticas. O CNJ apontou até mesmo uma suspeita de superfaturamento.

A empresa recebia, em média, 4,9 mil reais por mês por detento, enquanto a média em outros Estados, como São Paulo, era de 2 mil reais mensais. Ainda assim, em dezembro, o governo local anunciou que prorrogou por mais um ano, sem licitação, o contrato com a Umanizzare.

Suspeita de "acordo tácito"

Balanços recentes do governo federal também apontam que o poder das facções nos presídios ainda persiste. Logo após os massacres, o governo de Michel Temer anunciou que iria disponibilizar homens das Forças Armadas para realizar varreduras em presídios.

Em 2017 foram executadas 22 operações em 31 presídios estaduais nos Estados de Roraima, Acre, Rio Grande do Norte, Amazonas, Rondônia, Pará e Mato Grosso do Sul. No total, foram apreendidos 10.882 "objetos perfurantes e armas", 1.857 "kits de telefones celulares".

Tal volume de objetos nas prisões levou o ministro da Defesa, Raul Jungmann, a concluir que "parece haver uma espécie de acordo tácito" entre os "sistemas penitenciários" estaduais e o crime organizado. "A gente chega a pensar se não existe algum tipo de leniência, algum tipo de acordo entre Estados e os que estão presos aí dentro. Você encontra televisor, churrasqueira, freezer, o que vocês pensarem. Parece haver uma espécie de acordo tácito, 'não aperta a gente aqui que a gente não cria problema lá'", disse o ministro na última quinta-feira (28/12).

Os 26 Estados e o Distrito Federal também continuam a fazer pouco uso do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para a execução de projetos e construção de presídios. No dia 22 de dezembro, o governo anunciou que estava prorrogando o prazo para que os Estados utilizem o recurso.

No ano passado, o governo liberou 1,2 bilhão de reais para os Estados modernizarem seus sistemas carcerários, mas apenas 49 milhões foram efetivamente gastos – só 4% do valor total. Vários secretários estaduais apontam que a rigidez das normas para gastar os recursos dificultam a aprovação de projetos.

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