O Acordo Nuclear do Irã: consequências para o Brasil e Argentina?


Leonam dos Santos Guimarães

Doutor em Engenharia, Diretor de Planejamento,
Gestão e Meio Ambiente da Eletrobrás Eletronuclear e
membro do Grupo Permanente de Assessoria
do Diretor-Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA)
.

Dia 14 de julho de 2015, o grupo de potências mundiais “E3/UE+3” (China, EUA e Rússia, juntamente com três membros da União Europeia, Reino Unido, França e Alemanha) e o Irã concluíram em Viena, após meses de intensas negociações, um Acordo final sobre o Programa Nuclear Iraniano, destinado a garantir a natureza estritamente pacífica desse programa, em troca da suspensão das sanções internacionais contra o Irã, estabelecidas por diversas Resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

O próximo passo será o Conselho de Segurança da ONU aprovar o Acordo na forma de Resolução, que também suspenderá as sanções estabelecidas pelas Resoluções anteriores. Isto está previsto para ocorrer hoje, dia 21 de julho de 2015. Algumas medidas serão, no entanto, mantidas como exceção.

As sanções americanas e europeias relacionadas com o Programa Nuclear Iraniano visando os setores das finanças, energia e transporte, serão levantadas “assim que o Irã implemente” os compromissos assumidos pelo Acordo. Essa implementação deverá ser atestada por um relatório da AIEA, o que não deve acontecer antes de 2016. As sanções sobre aquisição de armas convencionais no exterior vão ser mantidas por cinco anos, mas exceções poderão ser concedidas pelo Conselho de Segurança. Toda aquisição pelo Irã de componentes para mísseis balísticos com capacidade de transportar ogivas nucleares permanece banida por um período indeterminado.

Não deixa de ser irônico o fato de dois dias depois da finalização do acordo, em 16 de julho de 2015, estar se completando 70 anos da primeira explosão de uma bomba nuclear, o teste “Trinity” de um dispositivo de plutônio, modelo básico da arma lançada sobreNagasaki em 10 de agosto de 1945. Note-se que mesmo naqueles primórdios, havia tal confiança dos projetistas americanos nas armas nucleares desenvolvidas pelo chamado “Manhattan Project”, que não foi julgado necessário testar o dispositivo de urânio, lançado sobre Hiroxima quatro dias antes, em 6 de agosto.

O texto integral do Acordo é altamente técnico, mas, surpreendentemente, é bastante legível para um documento internacional de controle de armas tão polêmico. A Casa Branca publicou uma página na internet que explica o Acordo em termos bastante didáticos.

Ele visa bloquear o acesso do Irã ao material necessário à construção de um explosivo nuclear, ou seja, urânio altamente enriquecido (alto teor do isótopo 235) ou plutônio “grau de arma” (alto teor do isótopo 239 e baixo conteúdo de isótopos mais pesados). Esse acesso poderia ser viabilizado por quatro caminhos distintos, os quais o Acordo busca bloquear: produzir urânio altamente enriquecido na instalação de Natanz; ou na instalação subterrânea de Fordow (protegida contra ataques aéreos); produzir plutônio “grau de arma” no reator de pesquisa de Arak e, por último, produzir esses materiais em locais secretos. Vejamos então os principais parâmetros do Acordo.

O parâmetro crucial para acesso aos materiais físseis é o chamado “Breakout time”, avaliação técnica do tempo necessário para oIrã produzir urânio altamente enriquecido suficiente para a fabricação de uma arma. Quanto mais longo esse tempo, mais viável se torna para a comunidade internacional detectar essa tentativa em tempo para atuar no sentido de bloqueá-la. Este tempo é atualmente de 2 a 3 meses, considerando o inventário de urânio de baixo enriquecimento existente e a capacidade separativa, ou seja, de enriquecimento, instalada em Natanz e Fordow, da ordem de 19.000 centrífugas. Natanz é a principal instalação de enriquecimento iraniano, com cerca de 17.000 centrífugas IR1 de primeira geração, 1.000 de IR2M, mais eficientes, e tem capacidade de acomodar um total de 50.000 máquinas.

Note-se que enriquecimento de urânio por centrifugação abre caminho para diferentes utilizações, segundo o grau de enriquecimento (taxa de concentração de isótopo U235): 3,5 a 5% para combustível de usinas nucleoelétricas, 20% para combustível de reatores de pesquisa e produção de radioisótopos para usos médicos e industriais, e 80-90% para uma arma. Esta última etapa, que vai dos 20% aos 90% é, tecnicamente, a de produção mais rápida. O Irã terá, portanto, que reduzir seu estoque de urânio de baixo enriquecimento, que hoje é de 10.000 kg, para 300 kg, por um período de 15 anos.

O Acordo, portanto, prevê o aumento desse “Breakout time”, com a redução do número de máquinas para 6.104 num prazo de dez anos. Todas as centrífugas autorizadas pelo Acordo ficarão em Natanz e serão aquelas cujos modelos são mais antigos e menos eficientes. Essa instalação, porém, não poderá produzir urânio com enriquecimento superior a 3,67%, o que é compatível com o grau exigido para fabricação do combustível da usina nucleoelétrica de Bushehr, durante 15 anos. Essa instalação passará a ser a única usina de enriquecimento iraniana, mantendo apenas 5.060 centrífugas, todas IR1. As centrífugas IR2M serão retiradas e colocadas sob controle da AIEA.

A instalação de Fordow, construída sob um maciço montanhoso e, portanto, praticamente impossível de ser destruída por ataque aéreo, permanecerá aberta, mas não será permitida nenhuma atividade de enriquecimento nela nos próximos 15 anos. Todo o urânio enriquecido existente em Fordow será de lá retirado. Cerca de dois terços de suas máquinas serão também removidas do local.

O Irã se compromete também a não construir nenhuma nova instalação de enriquecimento de urânio nesse período de 15 anos. Contudo, poderá prosseguir com suas atividades de pesquisa com centrífugas mais modernas e começar a fabricação, após oito anos, dos IR6, dez vezes mais eficazes que as máquinas atuais, e a IR8, com desempenho 20 vezes superior.

O Acordo visa também impedir que o Irã produza plutônio “grau de arma”, outro material físsil que pode compor o explosivo de uma nuclear. Esse material é produzido pela irradiação do combustível de reatores de pesquisa e produção de radioisótopos. O reator de água pesada em construção pelo Irã em Arak será modificado de modo a torná-lo incapaz de produzir esse tipo de plutônio. Todo combustível nele irradiado será enviado ao exterior durante toda a vida do reator. O Irã também não poderá construir um novo reator desse tipo durante 15 anos.

A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), já presente no Irã, será responsável por controlar regularmente todas as instalações nucleares iranianas, e terá suas prerrogativas consideravelmente reforçadas. Suas ações de salvaguardas se estenderão a todo Programa Nuclear Iraniano, desde a mineração e beneficiamento de urânio à Pesquisa & Desenvolvimento, passando pela conversão e o enriquecimento. Os inspetores da AIEA poderão ter acesso às minas de urânio e aos locais onde o Irã produz o “yellow cake” (concentrado de urânio) durante 25 anos.

O Irã também concedeu um acesso limitado dos inspetores da AIEA a suas instalações não nucleares, principalmente as militares, em caso de suspeita de atividade nuclear ilegal. Esse acesso é previsto pelo Protocolo Adicional (PA) ao Acordo de Salvaguardasdecorrente das obrigações assumidas pelo Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que o Irã se comprometeu a ratificar e efetivamente implementar. Note-se que Irã assinou o PA com a AIEA em 2003, mas nunca o ratificou. Apesar disso, aplicou-o de 2003 a 2006, quando então anunciou que deixaria de implementá-lo.

É justamente nesses pontos finais, ou seja, na implementação do Protocolo Adicional, que residem possibilidades de consequências do acordo nuclear do Irã para Brasil e Argentina. Conforme discutido em outro artigo, Brasil e Argentina constituem um caso especial na aplicação de salvaguardas da AIEA de acordo com o TNP.

Inicialmente, os dois países não aderiram ao TNP (1968). Bilateralmente, ambos instituíram um sistema de salvaguardas regional (1991) baseado na Agência Brasil Argentina de Contabilidade e Controle (ABACC). Em seguida, firmaram um Acordo deSalvaguardas Abrangentes com a AIEA (1994). Somente depois de estabelecido este sistema regional, reconhecido pela AIEA e do qual ela é parte ativa, os países aderiram ao TNP (Argentina em 1998, Brasil em 1999).

Uma demonstração clara da importância do regime de salvaguardas regional adotado pelo Brasil e Argentina vem das negociações ocorridas para revisão das diretrizes do Nuclear Suppliers Group (NSG). Cabe ressaltar que o NSG não é um órgão da AIEA. Logo, suas diretrizes não têm o respaldo direto nos tratados internacionais de salvaguardas em vigor. O NSG é constituído em base voluntária e suas Diretrizes não são legalmente obrigatórias. Cabe a cada Estado membro, em sua exclusiva soberania nacional, decidir se autoriza ou não exportações de itens controlados.

Nas negociações no NSG para a revisão das Diretrizes relativas ao controle de transferências de tecnologias de enriquecimento de urânio e reprocessamento de combustível irradiado, o Brasil empenhou-se em evitar que a adoção de PA viesse a ser considerado critério imprescindível para a transferência dessas tecnologias.

Após consistente esforço diplomático, o Brasil conseguiu que fossem estabelecidos dois critérios objetivos alternativos para que um país se qualifique a receber tais tecnologias: (a) ter um PA em vigor ou (b) fazer parte de um Acordo Regional para aplicação de salvaguardas aprovado pela Junta de Governadores da AIEA, antes da adoção do modelo de Protocolo Adicional (1997), condição que é atendida apenas pelo Brasil e pela Argentina (por meio do Acordo Quadripartite) e pelos EstadosParte daAgência Nuclear Europeia (EURATOM). Isto configurou um importante êxito da diplomacia brasileira.

É fato que a adoção de um PA como “critério imprescindível” para a transferência dessas tecnologias não afeta diretamente de forma significativa os interesses do Brasil no âmbito restrito do NSG. Entretanto, entende-se que a adoção de um PA elevada a um “critério imprescindível”, ainda que em âmbito restrito ao NSG, seria um precedente que viola a firme posição do Brasil no sentido do caráter voluntário da adoção do PA em quaisquer âmbitos.

A Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovada pelo Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008, estabelece que oBrasilnão aderirá a acréscimos ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares destinados a ampliar as restrições do Tratado sem que as potências nucleares tenham avançado na premissa central do Tratado: seu próprio desarmamento nuclear”. A condicionante para acréscimos ao TNP, que seria avanços reais no desarmamento das potências nucleares, certamente não foi atendida nem o será no curto prazo.

A adoção de um Acordo Regional para aplicação de salvaguardas aprovado pela Junta de Governadores da AIEA antes da adoção do modelo de PA como alternativa é uma postura coerente com a END e com o princípio da voluntariedade na adoção dePA por Brasil e Argentina, que vem sendo defendida com êxito pela diplomacia de ambos os países há mais de uma década, sendo um tema razoavelmente “pacificado”, mas nunca esquecido.

A efetiva aplicação do Acordo Nuclear do Irã, entretanto, poderá mudar essa situação “pacífica”. Ainda que pareça pouco provável, dadas as condições políticas internacionais, o E3/UE+3 pode, “animado” pelo sucesso da aplicação do PA no Irã, se voltar para os países que ainda não adotaram um PA, exercendo pressões políticas e até mesmo econômicas para universalizar sua implementação. Se verificarmos na lista dos países que ainda não o adotaram, Brasil e Argentina surgem como dos únicos que tem uma indústria nuclear desenvolvida e, portanto, seriam alvos preferenciais, caso tal “investida” realmente venha a ocorrer.

Cabe à diplomacia dos dois países ficarem muito atentas aos desdobramentos do Acordo Nuclear do Irã e identificarem indícios de que tal possibilidade possa vir a se concretizar para poder reagir em tempo de forma coordenada e eficaz na defesa do regime de salvaguardas regional implantado pelos dois países que é hoje um modelo de sucesso reconhecido internacionalmente e que tem sido citado como procedimento que poderia ser aplicado em outras regiões do mundo, até mesmo no Oriente Médio.

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