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Operações de Inteligência em Ambientes Interagências

Eugênio Moretzsohn
Especialista em Inteligência e Segurança
coronelmoretzsohn@gmail.com

Após participar do 3º Congresso de Ciências Militares, cujo tema foi “Operações Interagências”, na tradicional Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), na cidade do Rio de Janeiro, no período de 12 a 15 de agosto do corrente, decidi escrever sobre um aspecto não abordado no evento: como desenvolver operações de natureza sigilosa para o cumprimento de missão interagências, num ambiente de cooperação mútua entre instituições diferentes e corporações tradicionalmente competidoras entre si, temporariamente unidas por um objetivo comum?

A fim de facilitar e motivar o trabalho, imaginemos o seguinte cenário:

Contrabandistas introduzem armas, munições e drogas ilícitas por determinado ponto de nossa fronteira, valendo-se de mão-de-obra indígena contratada para guiá-los por dentre as matas preservadas e rios até os pontos de distribuição às margens de uma rodovia federal; em viagem de retorno, levam mulheres jovens recrutadas em lugarejos próximos para o exercício da prostituição no país vizinho. Policiais brasileiros ensaiaram uma operação, mas houve vazamento e os meliantes suspenderam momentaneamente suas atividades. A autoridade brasileira de mais alto nível que assessora diretamente a PR determinou a criação de um gabinete interagências para fazer frente ao problema, e desencadear ações de natureza sigilosa na região para o levantamento discreto de informações. Determinou, ainda, que o Ministério da Defesa disponibilize recursos humanos e materiais necessários para a operação, em coordenação com os demais órgãos.

Esse autêntico mosaico nos obriga a dividir os parágrafos em pedaços significativos, empregando o cartesianismo para decifrar o problema e tentar colocá-lo em tamanhos menores:

 
Problema
Agências mobilizadas
(numa análise preliminar)

 

Legenda

 
Contrabandistas introduzem armas, munições e drogas ilícitas por determinado ponto de nossa fronteira
 
(a) ABIN
(b) PF
(c) EB
(a) Agência Brasileira de Inteligência
(b) Polícia Federal
(c) Exército Brasileiro
 
 
valendo-se de mão-de-obra indígena contratada para guiá-los por dentre as matas preservadas e rios até os pontos de distribuição às margens de uma rodovia federal
 
 
(d) FUNAI
(e) IBAMA
(f) MB
(g) PRF

 

(d) Fundação Nacional do Índio
(e) Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
(f) Marinha do Brasil
(g) Polícia Rodoviária Federal

 

 
em viagem de retorno, levam mulheres jovens recrutadas em lugarejos próximos para o exercício da prostituição no país vizinho
 
(h) SDH
(i) SPM
(j) MPT
(k) MRE
(h) Secretaria dos Direitos Humanos
(i) Secretaria de Políticas para Mulheres
(j) Ministério Público do Trabalho
(k) Ministério das Relações Exteriores
 
Policiais brasileiros ensaiaram uma operação, mas houve vazamento e os meliantes suspenderam momentaneamente suas atividades.
 
(l) PM local
(m) PC local
(l) Polícia Militar do estado
(m) Polícia Civil do estado
A autoridade brasileira de mais alto nível que assessora diretamente a PR determinou a criação de um gabinete interagências para fazer frente ao problema, e desencadear ações de natureza sigilosa na região para o levantamento discreto de informações. Determinou, ainda, que o Ministério da Defesa disponibilize recursos humanos e materiais necessários para a operação, em coordenação com os demais órgãos.
 
 
(n) GSI
(o) MD
(p) FAB
(n) Gabinete de Segurança Institucional da PR
(o) Ministério da Defesa
(p) Força Aérea Brasileira

 
Quando nos deparamos com a definição e as características das Operações Interagências, todas constantes do recente Manual editado pelo Exército Brasileiro (EB20-MC-10.201), 1ª edição – 2013, percebemos a dificuldade que é tratar com independência e igualdade entidades tão diferentes em sua cultura organizacional, finalidade, subordinação e orientação política.

A legenda na tabela acima listou preliminarmente 16 agências diferentes, algumas já veteranas em parcerias (Ex: MPT e PRF), em contraposição com outras tão competidoras que não costumam compartilhar inteligência (Ex: PM e PC); há aquelas chefiadas por ocupantes de cargos comissionados, sem a obrigação de concurso e, portanto, sem o sentido de construir uma carreira, exceto a do “padrinho” com quem se compromete politicamente. Outras se destacam pela seriedade e despolitização – ao menos a partidária – e pela inexistência de sindicatos que subvertam a unicidade de comando, tão necessária para guiar sobriamente uma instituição, como é o caso das Forças Armadas. A convivência harmônica entre organismos tão diferentes em seu DNA mostrar-se-á um dos maiores desafios dessas operações.

Do citado manual do EB, retirei duas definições importantes para o prosseguimento dos trabalhos, a saber:

Agências são organizações, instituições e entidades, governamentais ou não, civis ou militares, públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, fundamentadas em instrumentos legais e/ou normativos que têm competências específicas e que exerçam alguma interferência, possuam interesse ou possam ser instrumentos, atores ou partes na prevenção de ameaças, no gerenciamento de crises e/ou na solução de conflitos.
 
Operações Interagências ou Operações em Ambiente Interagências: interação das Forças Armadas com outras agências com a finalidade de conciliar interesses e coordenar esforços para a consecução de objetivos ou propósitos convergentes que atendam ao bem comum, evitando a duplicidade de ações, dispersão de recursos e a divergência de soluções com eficiência, eficácia, efetividade e menores custos.
 
O leitor que desejar se aprofundar no tema, não deve deixar de ler o excelente artigo publicado aqui no DefesaNet de autoria do especialista Ten Cel Jonas de Oliveira Santos Filho, disponível no link http://www.defesanet.com.br/defesa/noticia/11634/As-Operacoes-Militares-no-Ambiente-Interagencias/

Lembremo-nos da definição mais usual de Operação de Inteligência: ação desenvolvida por um Órgão de Inteligência, mediante a aplicação de técnicas operacionais, visando à busca de dados negados e/ou à neutralização de ações adversas.

Em palavras cruas e claras: ações especiais, conduzidas por homens e mulheres com treinamento especial para produzir resultados especiais. Não encontraremos dentre eles o Sr e a Sra Smith, mas, sim, pessoas aparentemente comuns, invisíveis como um chicletes seco e velho grudado no asfalto, mas, de olhos e ouvidos atentos, frequentando os horários e locais certos, onde perceberão um comentário, um gesto, um encontro fortuito que será acompanhado discretamente, memorizado e seguido até revelar um dado importante que será registrado em mídia. É um jogo de paciência e discrição, do qual a sorte, bem definida como o encontro entre o talento e a oportunidade, também participa.

A maior parte das informações que procuramos está com as pessoas, e é justamente nelas que essas ações se concentram, procurando perceber suas distrações, fragilidades e preferências, criando, assim, condições favoráveis para obter acesso ao que elas escondem. Para isso, são utilizadas técnicas como vigilância discreta, aproximação sub-reptícia, engenharia social e entrevista de elicitação, apoiadas por microtecnologia e devidamente protegidas por uma coerente justificativa de proteção (também chamada de estória-cobertura ou EC).

Quando analisamos a definição de Operação de Inteligência e a incluímos no contexto de uma Operação em Ambiente Interagências, podemos imaginar o que significa levar adiante uma ação sigilosa inserida num ambiente totalmente multidisciplinar e aparentemente cooperativo, mas que, na verdade, guarda disputa pelo poder, intrigas e competição.

Listemos algumas dificuldades de imediato percebidas:

– o sigilo. Claro que uma ação de inteligência necessita ser sigilosa. E haverá sigilo quando mais de 16 atores de companhias diferentes estão presentes no cenário? Temos de contabilizar ainda os assessores e os integrantes indispensáveis para a execução da missão. E as questões logísticas e administrativas, as quais, como sabemos, são as que demandam um efetivo maior em pessoal? Haverá, por parte de pessoas tão diferentes, o compromisso necessário para preservar o segredo da missão?

– a compartimentação. Certamente será possível dividir a tarefa em partes, mas será viável que cada segmento seja distribuído aos respectivos encarregados de acordo com o princípio da Necessidade de Conhecer (need to know)? Essa medida é essencial para a preservação do sigilo, mas implica, necessariamente, na aceitação por parte do grupo de que poucos terão acesso a todas as informações. Fácil de falar, difícil de executar.

– origens diferentes. Embora a multidisciplinaridade (ou multifuncionalidade) seja uma qualidade desejável, pois enriquece o conhecimento final produzido, o DNA das diversas agências é muito diferente. Civis costumam olhar de soslaio para a tradicional sisudez dos militares, enquanto estes desconfiam que aqueles não sejam capazes de cumprir a contento tarefas sigilosas. 

– o ambiente cooperativo. Essa é a essência das Operações Interagências. Porém, sabemos da rivalidade entre as polícias civil e militar, quase sempre ligada à nefasta influência partidária. Sabemos, também, do loteamento de cargos comissionados no governo, que pode redundar em disputas pelos holofotes de operações de maior envergadura e sensibilidade, ainda que sigilosas. Os limites de jurisdição não são exatamente muito balizados e claros no Brasil, o que pode resultar em conflitos (e até em confrontos). A ciumeira será generalizada à medida que a operação for progredindo e os resultados aparecendo.

– a disputa por recursos. As sempre ávidas agências governamentais lançam-se com sofreguidão à disputa de créditos disponibilizados para ações emergenciais, o que geralmente redunda em tentativas de monopolização da atenção das altas autoridades e em superdimensionamento da importância de determinada ações, embaçando a necessária clarividência dos dados realmente verdadeiros.

– as limitações. As instituições militares possuem unidades de inteligência eficientes. Algumas entidades civis listadas na tabela acima, também. Entretanto, outras não possuem pessoal qualificado para tarefas assim. Estas (as que não possuem) aceitarão não participar da operação de inteligência que levantará as informações necessárias? As que participarem  deveriam compartilhar os conhecimentos sensíveis produzidos com aquelas? É preciso lembrar que, quem não possui um setor de inteligência, não sabe (e nem deve saber) lidar com informações sigilosas, pois não possui a capacidade de lhes conferir o tratamento correto.

– o comando. Na situação fictícia criada, ficou subtendido que o comando será do GSI. Em seu guarda-chuva está a ABIN, a unidade central do SISBIN (Sistema Brasileiro de Inteligência). Menos mal, mas os organismos civis terão de adaptar a essa estrutura, à qual os militares estão ambientados. Pior seria se o comando coubesse a um órgão civil puro, sem experiência em ações secretas.  

Na busca por soluções possíveis, aqui apontadas apenas como sugestões, pois o assunto nunca se esgotaria num texto como este, procurei listar as seguintes opções:
 

Forma de atuação vantagens desvantagens
 
as ações de inteligência serão de integral responsabilidade de uma agência
Comando e decisões centralizadas, padronizadas e conhecidas pelos agentes em campo
Facilidades logísticas e administrativas
Coerência doutrinária
Sigilo, segurança e controle
Responsabilidades definidas e auditáveis
Simplicidade e agilidade nas decisões
Perda da multifuncionalidade e complementariedade
Dificuldade de compartilhar as informações com as demais agências
Risco de excesso de compartimentação
Facilidade de uso inadequado do conhecimento produzido, caso seja de alguma forma comprometedor
 
as ações serão executadas com a participação de representantes de todas as agências com igual peso
Multifuncionalidade e complementariedade
Decisões tomadas de forma consensual, com efeitos sinérgicos evidentes
Maior comprometimento de todas as agências por estarem diretamente envolvidas, fortalecendo o respeito mútuo entre elas
Dificuldade de controle e coordenação
Pouca agilidade
Maior possibilidade de perdas de segurança e sigilo
O uso de pessoal não qualificado pode colocar a missão em risco
 
as Op Intlg serão executadas por uma agência, entretanto, integrantes de outras agências dela tomarão parte, em aproveitamento de habilidades específicas

Relativa unidade de esforços, com efeitos sinérgicos apenas parciais

Uso de agentes conforme suas especialidades e com maior possibilidade de êxito
Relativas multifuncionalidade e complementariedade

 

Necessidade de diploma legal por parte da agência coordenadora
Diferenças doutrinárias podem colocar em risco a missão
Necessidade de compartilhar os resultados com as demais agências não participantes
Desgaste e impopularidade junto às agências não participantes

 
Observando a tabela, podemos ser levados a pensar que a primeira opção é a que reúne mais vantagens. Ela seria verdadeira se a operação não fosse interagências, conforme determinado. Na verdade, fico com a terceira via, pois apresenta as vantagens determinantes da primeira e da segunda, enfatizando que a possibilidade de se recrutar especialistas em outras agências é uma boa solução para complementar nossas deficiências. Isso me faz lembrar os tempos de capitão, na década de 90, quando chefiei um órgão de inteligência que possuía um sargento fluente em guarani, o idioma dos índios da fronteira sul. Algumas vezes foi cedido a outras agências carentes de tal especialidade. Em outras oportunidades, solicitei e obtive o valioso apoio de agentes mulheres, inexistentes à época no EB, indispensáveis nas situações onde a justificativa para a presença em certos ambientes somente seria coerente e segura para um casal. As agências de modo geral já se acostumaram a trabalhar com especialistas cedidos, sejam fotógrafos, intérpretes, motoristas, peritos diversos, chaveiros e até snipers.

Já que a escolha recaiu sobre a terceira forma de atuação, permito-me agora sugerir para qual agência a missão de coordenação seria atribuída. A escolhida poderia ser a ABIN, já que é a figura central do SISBIN e se relaciona diretamente com o GSI. Porém, retornando ao texto em itálico onde está narrado nosso case, pode-se observar que o ambiente operacional estende-se por área de matas e rios, próximo à fronteira onde até índios estão envolvidos. Desenvolver ações nesses ambientes me parece mais afeta à inteligência militar, especialmente ao EB, o qual possui soldados índios em suas fileiras oriundos de várias etnias. Tive a honra de comandar homens assim, no interior do Amazonas, muito úteis em missões descentralizadas.

A capacidade de durar com poucos suprimentos e o senso de orientação e navegação, exacerbados no treinamento militar de selva, poderão ser atributos cruciais para o sucesso de missões como esta. As subunidades de inteligência do EB são regionais e seus quadros, muitas vezes, são recrutados entre a população da área, o que favorece a miscigenação imprescindível à invisibilidade em lugares ermos e de pouca circulação de pessoas. Passar-se por barqueiros (estivas), peões de gado e pequenos agricultores que procuram seringas, açaí e castanhas é natural para os amazônidas e nascidos no centro-oeste, cujos pais frequentemente exerciam atividades assim. Por último, a metodologia usada na inteligência do EB, cartesiana e disciplinada, favorece seu emprego num cenário onde estarão presentes atores de outros matizes pela adição de especialistas às equipes. Imaginar quais seriam os especialistas necessários ao cumprimento da missão parece-me um exercício de futurologia sem estudá-la com um Estado-Maior e ouvir as experiências de outros agentes que atuaram na área.

Entretanto, uma passada de olhos preliminar nos permite identificar como agências necessárias a ABIN, a Marinha do Brasil, a Polícia Federal, a FUNAI, o IBAMA e a FAB, pela cessão dos meios aéreos. As demais agências estariam ao alcance do coordenador atuando como consultoras. Por fim, uso um último argumento para justificar a escolha do Exército como agência guarda-chuva dessa missão: desde o Projeto Rondon, passando pelos desfiles comemorativos de 7 de Setembro e chegando às operações de socorro às vítimas de catástrofes, o EB me parece a instituição mais habituada ao trato com integrantes de outras agências. Portanto, a rejeição será menor e a multifuncionalidade certamente bem aproveitada. O leitor tem, logicamente, a liberdade e o direito de discordar.

Escolhida a terceira via, resta-nos debater sobre como minimizar suas desvantagens:
 

Desvantagens Como reduzi-las
Necessidade de diploma legal por parte da agência coordenadora O diploma legal será concedido pela mais alta autoridade (PR), investindo a agência coordenadora da autoridade necessária.
 
Diferenças doutrinárias podem colocar em risco a missão
Agentes de organismos diferentes possuem os mesmos fundamentos, mas podem ocorrer diferenças na forma de atuação. Os ensaios da missão devem ser exaustivos, procurando pela total compreensão das tarefas e sua fiel execução.
As Regras de Engajamento procuram normatizar quais ações tomar diante de diversas situações; as Op Intlg também necessitam de vade-mecum quedescreva as ameaças principais, o cenários possíveis de ocorrer e a forma mais simples e adequada de lidar com eles.
Necessidade de compartilhar os resultados com as demais agências não participantes A agência coordenadora deverá seguir o need to know a fim de reduzir a possibilidade de vazamentos, e isso implica em restrições. As agências não participantes devem receber uma minuta de informação que as atualize, sem comprometer a segurança, e pode ser por meio de uma reunião semanal de atualização e alinhamento.
Desgaste e impopularidade junto às agências não participantes Desafio para a comunicação social. Convidar pessoas para jantar, sem lugar cativo à mesa, implica num exercício de boa vontade e simpatia até acomodá-las em assentos periféricos. A maturidade das instituições e de seus líderes deveria comportar situações assim, em busca de autêntica unidade de esforços.

 
Assim, por meio deste, procurei levantar alguns aspectos que necessitam ser considerados ao se desencadear operações de inteligência em ambiente interagências, lembrando que essa forma de atuação colaborativa é a mais indicada para problemas multidisciplinares, sendo largamente empregada pela ONU. Resta saber se as instituições saberão conduzir com o necessário sigilo e imparcialidade ações sensíveis, as quais, algumas vezes, podem até mesmo revelar a participação de integrantes de uma das agências em atos de corrupção ou coisa pior. Não saberemos sem tentar.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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