Ricardo Brandt
O Exército brasileiro concluiu ontem, na periferia de Campinas, a 100 km de São Paulo, os primeiros ensaios em operações urbanas do novo blindado sobre rodas Guarani, um dos sete projetos estratégicos da Força Terrestre nacional O veículo está sendo construído, em Minas Gerais, pela Iveco, uma subsidiária do grupo Fiat. Em 2014, o Guarani estreia em ação – vai para o Haiti, servir ao batalhão brasileiro 11a Força de Paz.
O veículo terá nove diferentes versões e vai substituir, até 2030, o velho Urutu EE-11, de transporte de tropa, e, em certa medida, o Cascavel EE-9, de reconhecimento armado – leva um canhão de 90 milímetros. Os dois modelos foram produzidos até 1988 pela extinta Engesa.
Além da avançada eletrônica embarcada, a nova família de blindados tem a couraça resistente a disparos de calibre 7,62 mm, a estilhaços de granadas propelidas e a impacto de cargas explosivas leves. É também mais ágil nas ações em áreas densamente habitadas. Serão construídos 2.044blindados, O contrato chega a R$6 bilhões.
Os testes são feitos nos bairros e vilas das regiões carentes de Campinas, nas quais o cenário é muito semelhante ao encontrado nas comunidades do Haiti. A operação envolve 1.200 militares brasileiros, que serão transferidos para o país caríbenho ainda neste mês. O Brasil comanda há nove anos a Força de Estabilização criada pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Devastado desde 2003 por um longo conflito civil e, depois, por uma disputa entre gangues ligadas ao crime organizado regional, o Haiti foi duramente atingido em janeiro de 2010 por um terremoto de grande magnitude. Morreram 316 mil pessoas. O país caríbenho ainda não se recuperou.
O contingente em instrução na cidade há um mês vai dedicar atenção especial às eleições municipais e para o Senado, previstas para o começo de 2014. UE uma situação de risco e tensão, porque as eleições envolvem todas as facções políticas locais", afirmou o coronel Antônio Ribeiro da Rocha Neto, de 47 anos, que voltou do Haiti em junho. Os militares estão distribuídos em um batalhão, mais duas companhias, que estão localizadas nas áreas de maior tensão social do país caríbenho.
Com quase 80% da população vivendo com menos de US$ 2 por dia, alta taxa de mortalidade infantil, metade das crianças fora de escola e com o governo classificado como um dos mais ineficientes do mundo, revoltas populares são consideradas risco real durante o pleito.
Blindados
A expectativa é que os primeiros blindados Guarani operacionais sejam enviados ao Haiti no primeiro semestre do próximo ano. Nas ruas 1 de um núcleo habitacional da periferia de Campinas, dois deles são empregados em simulações de conflitos com gangues, ocupação de áreas tomadas e cie patrulhas de segurança – situações típicas que serão enfrentadas na missão de paz.
"O Guarani está em processo de avaliação real. Á tropa usa o veículo na prática e depois faz recomendações de ajuste. O objetivo é averiguar o comportamento nas ruas, em áreas urbanas, que é muito da atividade regular da tropa no Haiti", explicou o coronel Anísio David cie Oliveira Júnior, comandante do 19.0 Contingente do Batalhão de infantaria da Força de Paz (Brabat-19) que passará seis meses no Haiti.
Na semana passada, na Vila Padre Anehicta, os moradores foram surpreendidos; com o motor roncando forte, um grande Guarani, de tração 6×6, avançou pela viela estreita, mal traçada e sem asfalto. A intenção era impedir a passagem de um hipotético grupo de suspeitos.
As pessoas saíram às pressas de dentro das casas e barracos. "Tomei um baita susto. Acordei sem entender nada", disse o pedreiro João Pereira, de 48 anos. Em outro ponto da mesma favela, os soldados, com os capacetes azuis que identificam os militares da ONU, trocaram tiros com homens armados que simulavam um confronto com rebeldes haitianos em plena tarde de quinta-feira. No dialeto local, o "criole", davam ordens aos criminosos: "Metezansas ou atê"- ou "abaixem as suas armas".
Segundo o coronel David, "tentamos reproduzir todo tipo de situação". Isso significa atuar em episódios de combate direto, de resolução de conflito, de atendimento e remoção de feridos, além da intervenção em eventuais acidentes naturais. Parte do time está permanentemente engajada em programas de assistência social e sanitária. Os militares brasileiros são os mais bem aceitos pela população local, segundo o Comissariado da ONU para a Missão de Estabilização do Haiti (Minustah).
O sargento Borges e a dura memória do dia da grande tragédia
O sargento Marcelo Borges, de 43 anos, embarca pela quarta vez para cumprir um período na missão de paz no Haiti. Em 12 de janeiro de 2010, quando o terremoto destruiu o país e deixou 316 mil mortos, ele se preparava para fazer o roteiro inverso: encerrava sua segunda viagem e estava pronto para o embarque de volta ao Brasil. "Faltou chão. Faltou mesmo. Tudo tremeu. Tudo acabou", relatou.
"Lembro do que aconteceu naquele dia e madrugada com detalhes e também do que veio depois, durante outros 28 dias de resgate de vítimas, de pedidos de ajuda. Eram cinco da tarde, só fui conseguir falar com a minha mulher, e informar que estava bem, às duas da madrugada."
Borges pilota o Guarani. Há três anos, esteve no local onde morreu a brasileira Zilda Arns. "O motorista que acompanhava dona Zilda saiu do prédio em que os dois estavam, foi pegar alguns documentos no carro. Ele se salvou. Ela, não." / R.B.
Tipo exportação
A nova família de blindados Guarani substituirá até 2030 os Urutu e Cascavel, que têm mais de 30 anos de uso. O Guarani está em avaliação. Projetado para as condições rústicas de ambiente e terreno do continente latino-americano, pode virar um sucesso de exportação. Vários países da região já manifestaram a intenção de comprar.
A Argentina, por exemplo, quer adquirir de 9 a 12 unidades. O primeiro esquadrão entregue ao Exército brasileiro vai servir na nova Brigada de Infantaria Mecanizada, em Cascavel (PR). A Iveco-Fiat produz os Guarani, com propriedade intelectual do Exército, na fábrica de Sete Lagoas (MG). O veículo é anfíbio, como seu antecessor. Tem proteção balística contra munição calibre 7,62 mm perfurante, chega a 100 quilômetros por hora em estrada semipavimentada e pesa 18 toneladas.
Ele tem capacidade para levar nove combatentes equipados, mais três tripulantes. A arma principal da torre automatizada é um mix do canhão 30 mm com uma metralhadora 7.62 mm. O sistema de mira eletrônica rastreia objetos em movimento até 1 quilômetro de distância. Seu nome oficial é Viatura Blindada de Transporte de Pessoal – Média sobre Rodas (VBTP-MR).