Gestão Doria usa detenções e lei mais dura para sufocar protestos em São Paulo


Artur Rodrigues
Guilherme Seto
São Paulo

 
O governo João Doria (PSDB) tem usado medidas policiais e judiciais para sufocar e desarticular manifestações e evitar um novo junho de 2013 em sua gestão no estado de São Paulo.

O tucano acalenta o projeto de concorrer à Presidência da República em 2022; para isso, sabe que não pode ver sua popularidade avariada como a dos políticos que viraram alvos de manifestações há pouco mais de seis anos.

A polícia tem detido manifestantes em massa, levado-os à Justiça e tem até revistado a imprensa nos protestos —em alguns casos, jornalistas foram agredidos por profissionais de segurança.

Além disso, logo que assumiu o cargo, Doria endureceu a lei para dar arcabouço legal à repressão aos protestos.

O governo do estado afirma que é a favor da liberdade de imprensa e que os policiais só utilizaram força física quando tiveram que reagir a depredações ou violência.

Na busca de se encaixar na onda bolsonarista em 2018, Doria prometeu que a polícia atiraria para matar caso ele fosse eleito. Sua abordagem em relação às manifestações parece ser extensão de uma política de segurança pública que atingiu ponto crítico na tragédia de Paraisópolis (na qual nove jovens morreram após ação da PM) e afago a uma parcela do eleitorado que pode ser relevante daqui a três anos.
 
Em seu primeiro mês no Palácio dos Bandeirantes, Doria regulamentou lei de 2014, gestada no bojo das reações às manifestações de 2013 (contra o aumento da passagem) e de 2014 (contra a Copa do Mundo), com a proposta de endurecer o tratamento aos adeptos da tática black bloc, que pregam depredação e usam máscaras negras.
 
De acordo com a lei, o uso de máscaras é vedado. No caso de pessoas sem documentos, essa lei prevê que o policial poderá contatar familiares e até o empregador da pessoa.
 
A lei também determina comunicação prévia de protestos com expectativa de público superior a 300 pessoas com no mínimo cinco dias de antecedência. O itinerário deve ser definido em conjunto com o comandante da PM na região.
 
Em junho de 2019, alunos e funcionários da USP se reuniram no entorno da universidade para protestar contra a reforma da Previdência.

Na versão dos policiais que acompanharam o ato, um carro teria furado bloqueio dos estudantes, que teriam ateado fogo no veículo e, então, sido detidos. Posteriormente, o delegado acrescentaria a leitura de que os próprios participantes haviam levado o carro ao local para explodi-lo.

Os manifestantes afirmam que apenas participavam do protesto e que foram escolhidos aleatoriamente por agentes para responder por infrações que não cometeram.

Nas dependências do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), a reportagem presenciou, à época, agentes afirmarem que havia ordens do governo para que casos do tipo fossem tratados com tolerância zero.
 
Vídeo obtido pela Folha na época mostrava que o carro fora estacionado sem tumulto e, então, incendiado com a participação de cinco indivíduos.
 
Dez pessoas foram detidas por incêndio, desacato, dano ao patrimônio e associação criminosa. Eles passaram a noite presos e foram liberados em audiência de custódia no dia seguinte. O caso seria arquivado meses depois.
 
O indiciamento por associação criminosa tem base no artigo 288-A do Código Penal, de 2012, pensado para combater milícias do Rio de Janeiro. A Polícia Civil de São Paulo passou a utilizá-lo em 2014 para coibir black blocs.

O crime de formação de quadrilha passou a ser chamado de associação criminosa em 2013, com algumas modificações. No entanto, a aplicação a manifestantes sem máscaras tem se mostrado controversa.

"Estão sendo acusados de associação criminosa e nem se conhecem. Nenhum deles viu carro furando bloqueio. Foram presos aleatoriamente os que tiveram mais dificuldade em fugir. Um deles tem problema no joelho, por exemplo. Pegaram como exemplo político. Vão constranger, dificultar, fazer passar a noite na cadeia aqueles que participaram de uma manifestação legítima para que tenham medo de voltarem às ruas", disse, à época, Pedro Azevedo Sodré Filho, advogado de um dos detidos.

Roberto Podval, advogado que também representou alguns alunos, vê uso do Judiciário para intimidar manifestações legítimas. "Não eram mascarados, não era um protesto partidário. Eram alunos, sem ligação entre si nem com qualquer coisa. É vexatório e indigno da democracia", diz.
 
Ele também critica a postura do governo. "O que o Doria tem de liberdade de mercado ele não apresenta no olhar para a sociedade. Ele tem visão tacanha do que é manifestação e da sua legitimidade. Nunca vai dar certo querer aquietar a sociedade por meio da repressão", completa.
 
A judicialização coloca-se como ameaça a estudantes por ter potenciais efeitos de longo prazo. Ela pode, por exemplo, em caso de eventual condenação em segunda instância, impedi-los de exercer cargos em instituições públicas.
 
A ação da PM não tem poupado nem jornalistas, que foram revistados e até agredidos nos últimos protestos do Movimento Passe Livre, contra reajuste da tarifa de ônibus e trens de R$ 4,30 para R$ 4,40.
 
Na quinta (9), antes de um ato, o repórter Arthur Stabile, da Ponte, veículo focado em segurança pública e direitos humanos, registrou com celular uma abordagem policial. Logo depois, ele e outros jornalistas que trabalhavam no protesto foram revistados.

Stabile lembra que estava com o crachá na mão. "[Falaram para colocar a] mão na cabeça, abre a perna, revista tudo, tirei tudo que tinha no bolso, abriram a mochila, perguntaram se tinha ilícito, se usava droga, se tinha problema na Justiça, se eu tinha ido pra delegacia", disse.

No mesmo dia, o fotojornalista Daniel Teixeira, do jornal O Estado de S. Paulo, foi atingido por um golpe de cassetete nas costelas, mesmo com a câmera nas mãos e identificado.

A PM deteve cerca de 30 pessoas que estavam dentro de uma estação de metrô após protesto do Passe Livre na última semana. Houve tentativa de participantes de pular as catracas, mas a Folha conversou com detidos que disseram não ter participado dessa ação e que, como em junho, teriam sido escolhidos aleatoriamente por participarem do ato.

Uma revisora de 28 anos afirmou que esperava uma amiga quando foi colocada em um ônibus e encaminhada para o 78º DP na ocasião. Os PMs fotografaram os manifestantes, anotaram seus dados e os liberaram sem muitas perguntas.

No protesto seguinte, a revisora foi reconhecida e abordada novamente. "Uma policial que estava na primeira manifestação me reconheceu, me segurou e me perguntou se eu estava fazendo tumulto. Daí outro policial abriu a minha bolsa, cheirou a minha garrafinha de água e me liberou", diz.
 
"Essa policial ainda me falou que eu estava qualificada. Perguntei para a advogada e ela me explicou que é um termo usado para falar que a pessoa foi identificada pela polícia".
 
O ato de fotografar os protestos é visto como mais uma das táticas usadas para desgastar os manifestantes.
 
“Psicologicamente, é difícil ficar no ato. A polícia tem adotado uma postura de matar a manifestação por inanição ou sufocamento”, afirma o professor de relações internacionais da Unifesp Acácio Augusto.
 
Ele coordena o Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento, grupo que acompanha a ação policial em protestos em São Paulo.
 
De acordo com ele, desde 2014, ainda com Geraldo Alckmin (PSDB), a polícia vem apertando o cerco aos protestos dos chamados grupos autônomos, que inclui estudantes secundaristas e o Passe Livre.

Repressão a protestos
 
A principal mudança, para ele, aconteceu em 2014 com a criação do Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia), um grupo com funções de atuação antiterrorista e para distúrbios civis. Foi naquela ocasião que policiais militares passaram a usar exoesqueletos, que davam um visual estilo Robocop.

Os protestos também começaram a ser cercados por um contingente muito grande de policiais, o chamado envelopamento. Segundo o professor, a tática afasta pessoas que têm receio de estarem presas em um ambiente no qual a polícia utiliza com frequência munição não letal e bombas de gás contra os manifestantes.

Na gestão Doria, Acácio destaca a ampliação do Baep e a regulamentação da lei no começo do ano como fatores que ajudam a sufocar as manifestações.
 
Ele cita a criação de um grupo de mediadores de conflito da Polícia Militar, mas que, na prática, passa mais a mensagem externa de que há negociação do que acontece de fato.
 
"Estamos voltando a um momento em que tem apelo dizer que toda manifestação é baderna. O governador assim tenta acenar para o eleitorado que o colocou no posto e investe no fracasso do núcleo bolsonarista, pensando na eleição presidencial de 2022", diz Marco Antonio Teixeira, professor de administração pública da FGV-SP.
 
A gestão Doria, por meio da Secretaria da Segurança Pública, afirma que a PM faz o acompanhamento de atos para garantir o direito à livre expressão e a segurança de todos, manifestantes ou não.
 
"Inclusive, a corporação regularmente convida os organizados e/ou representantes de movimentos para reuniões prévias a fim de planejar e organizar os atos, preservando o direito de todos", diz.
 
Em 2019, foram acompanhados 101 atos com 28 mil pessoas. Sem contar os levados para delegacia, a pasta afirma que ocorreram apenas cinco prisões de adultos, além da captura de dois foragidos e a apreensão de um adolescente.

O governo do estado afirma que a força só foi usada em casos de depredação do patrimônio e violência. Diz ainda que o único registro de ferido que tem é de um PM atingido por uma barra de ferro. A pasta afirma ainda que desde 2019 utiliza a figura do mediador, que atua "diretamente junto aos líderes para dialogar e evitar confrontos", e que apoia a liberdade de imprensa.

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