Por Caio Maia e Taymã Carneiro
G1 PA — Belém
"Parece que fizeram uma seleção de psicopatas", diz um agente prisional do Pará para descrever a atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), que iniciou em julho no estado, após o massacre em Altamira. O G1 teve acesso à integra da ação assinada por 17 procuradores do Ministério Público Federal (MPF), que reúne relatos de detentos, ex-detentos, familiares e agentes prisionais, além de imagens e vídeos, apontando indícios de violações de direitos humanos generalizadas contra presos durante a intervenção.
O resultado das investigações incluem de violência física, tortura, privação de sono e de alimentação a casos de abuso sexual. Tanto o governo federal quanto o estadual negam que houve excessos.
O conteúdo da ação estava sob sigilo até a Justiça Federal decidir pelo afastamento do coordenador da FTIP no Pará, Maycon Cesar Rottava, por improbidade administrativa. No documento, o MPF afirma que mesmo sem evidências de que o comandante tenha executado diretamente os supostos atos de abuso de autoridade, tortura e maus tratos, há indícios de que ele manteve "postura omissiva".
No Complexo Penitenciário de Santa Izabel, na região metropolitana, foram relatados casos de violência física e moral, com uso de spray de pimenta; não fornecimento de comida, itens de higiene pessoal e de acesso a assistência à saúde; e proibição de contato entre detentos com a família e advogados.
Em outra casa penal, o Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua, o relatório afirma que uma detenta teria abortado em razão de agressões físicas; outra perdeu visão temporariamente por causa do uso abusivo de spray de pimenta. As detentas, segundo os relatos, foram colocadas em formigueiro, em locais com fezes de ratos; e foram obrigadas a usar apenas roupas íntimas e a não irem ao banheiro.
Na terça, o presidente Jair Bolsonaro foi questionado sobre o assunto durante entrevista coletiva no Palácio da Alvorada e pediu, aos jornalistas, que "parem de perguntar besteira".
Cinco dias após o afastamento de Rottava, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, disse, em visita ao Pará, que "não estão corretas" as premissas expostas pelo MPF. O ministro afirma que tem "absoluta crença" que a questão será resolvida.
Na madrugada de quarta-feira (9), o ministro Sérgio Moro publicou no twitter que "a Ftip/Depen no Pará está realizando um bom trabalho, retomando o controle dos presídios que era do Comando Vermelho". Segundo Moro, os crimes caíram nas ruas por conta da ação. "Os presos matavam-se uns aos outros antes disso e se houver comprovação de tortura ou maus tratos, os responsáveis serão punidos", disse o ministro.
Juiz de execução estadual e demais autoridades estaduais não reconhecem os abusos.Alguns relatos de presos quanto a abusos já foram provados serem falsos.Os fatos estão sendo apurados com rigor pelo DEPEN e por outras autoridades.Ninguém irá tolerar abusos se confirmados.
— Sergio Moro (@SF_Moro) October 9, 2019
O Governo do Pará também nega que houve agressão a detentos.
A atuação da força-tarefa no Pará começou em julho, após o massacre que resultou na morte de 62 presos no presídio de Altamira, sudoeste do Pará. À época, o governador Helder Barbalho solicitou a ajuda do governo federal para intervenção em 13 unidades do estado.
Para elaborar a ação contra a União e o Estado do Pará, os procuradores ouviram detentos, familiares de presos e servidores do sistema penitenciário, além de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que realizaram inspeções nas casas penais do estado, e do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNCT).
A maioria dos relatos ocorreram no Complexo Penitenciário de Santa Izabel, na região metropolitana de Belém. Segundo o parecer do MPF, os detentos foram amontoados em celas, sem água, sem comida e usando apenas roupas íntimas. Os presos relatam também que o ambiente é "completamente insalubre". Eles afirmam que foram obrigados a realizar necessidades fisiológicas no local e têm de dormir cobertos por fezes e urina.
"Temos que comer comida do chão, que é coberto de fezes. Isso é desumano. Quando pegam um funcionário vocês dão uma atenção. Como é que vocês querem ressocializar o preso?", questiona detento que não teve a identidade revelada.
Entre as humilhações relatadas pelos presos está a agressão a um deficiente físico. "Tem um que faltava uma perna, e davam rasteira nele. Eles (agentes federais) mandaram um rapaz subir a escada de quatro", relatou outro preso.
"Ninguém é contra a intervenção. Nós não estamos reivindicando que cessem a intervenção, não, é a tortura. Eles estão apanhando, eles estão sem comer, eles estão sendo torturados física e psicologicamente. É como se o Estado tivesse impondo uma situação para que viesse acontecer uma rebelião, para que aconteça uma chacina como a que teve lá em Altamira", disse familiar de um detento custodiado em Santa Izabel.
Abusos sexuais
Os relatos do presídio de Santa Izabel também envolvem abusos sexuais. Em um dos casos, agentes federais e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) teriam inserido o cabo de uma arma no ânus de um detento. Segundo o preso que relatou o caso, a vítima precisou ser atendida por uma ambulância.
"Eu vi eles pegando o cabo de uma doze e introduzindo no rapaz. Foram dois agentes, ele estava em posição de procedimento, ou seja, com as mãos na cabeça. Tentaram primeiro introduzir no ânus dele um cabo de enxada, mas não conseguiram, aí conseguiram com o cabo da doze. Inclusive, eu vi esse rapaz saindo de ambulância e os médicos atendendo ele", contou.
Os abusos também aconteciam dentro das celas, segundo os relatos. Os presos estariam sendo obrigados a se beijar e a tocar nas partes íntimas uns dos outros durante revistas, realizadas diariamente. Detentos contam que os agentes também introduziam materiais menores, ou o dedo, no ânus de alguns presos.
"Os agentes federais e o Core mandavam a gente esfolar o pênis (…) e a gente virar de costa (…) para ver nossos ânus; Isso não ocorreu somente no primeiro dia, acontece em todas as revistas. Somos revistados todas as vezes que saímos da cela", relatou outro preso.
Presídio feminino de Ananindeua
O CRF de Ananindeua, na região metropolitana de Belém, foi vistoriado após denúncias de maus tratos em ação do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) para retomada de controle da unidade. De acordo com os parentes, as presas foram amontoadas em celas superlotadas e foram agredidas diariamente, em setembro deste ano.
Uma inspeção de cárcere, realizada no dia 12 de setembro por representantes da OAB-PA e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), constatou que as detentas estavam sendo obrigadas a sentar em uma quadra repleta de urina e fezes de rato. A comissão também aponta que, em vários momentos, as presas foram forçadas a ficar nuas em frente a agentes federais homens.
Um relatório emitido pelo MNCTP detalha que há "uma situação generalizada de superlotação". O parecer aponta ainda que existem celas com até 80 detentas e que as celas são "completamente abarrotadas em condições degradantes, com acesso restrito a água e alimentação”.
A OAB-PA também relata que mulheres em período menstrual são forçadas a ficar sem absorventes íntimos. Em um dos casos, a OAB cita que detentas foram colocadas sentadas em cima de formigueiros dentro de um pavilhão.
"O pessoal da Força queria que eu comesse absorvente. Na hora que a mulher estava me batendo, eu comecei a sangrar. Eu falei pra ela: 'eu tô sangrando, senhora'. Ela respondeu 'eu não quero saber, cala a tua boca'", contou uma detenta.
Outro lado
Na manhã desta terça-feira (8), o Ministério da Justiça divulgou uma nota dizendo que não reconhece as denúncias de tortura em presídios do Pará. Segundo o Ministério, sindicâncias foram instauradas para apurar as denúncias e, se forem comprovados "desvios de conduta", os agentes serão afastados das funções e responderão a processos administrativos. Ainda de acordo com a nota, a pasta "reafirma a confiança e o compromisso do trabalho realizado pelas forças tarefas de intervenção".
À época do afastamento do coordenador da FTIP no PA, o Governo do Estado informou, em nota, que foi notificado sobre a decisão da justiça federal do afastamento cautelar e afirmou que a atuação da FTIP nas casas penais do Estado continua e que a decisão judicial é apenas uma medida preventiva.
O Governo do Estado disse ainda que no mês de setembro, 64 presas do Centro de Recuperação Feminino, indicadas por membros do Conselho Penitenciário, e 8 do Complexo Penitenciário de Santa Izabel, indicados pelo Mecanismo Nacional de Combate a Tortura, foram submetidos à perícia no Centro de Perícias Científicas Renato Chaves e constatou-se a inexistência de sinais de tortura ou de maus-tratos.
Segundo o Governo do Pará, a Advocacia Geral da União e o Ministério Público do Estado devem recorrer da decisão da justiça, por entenderem que ela não tem fundamento.
O Departamento Penitenciário Nacional (Depen), responsável pela FTIP, divulgou uma nota na noite de terça (8). Veja na íntegra:
Reforçamos que as funções da FTIP são divididas em três etapas, sendo a primeira a retomada do controle, da ordem da unidade prisional e da instalação de procedimentos de segurança semelhantes ao do Sistema Penitenciário Federal (SPF). A segunda etapa abre a possibilidade para as visitas dos órgãos de inspeção e promoção de ações que intensifiquem as assistências como atendimentos à saúde e jurídico – isso permite que haja a segurança necessária para todos os envolvidos, permitindo a execução de assistências previstas na Lei de Execução Penal (LEP). Na terceira fase há o treinamento dos agentes penitenciários do estado.
Cabe esclarecer que, no mês de setembro, 64 presas do Centro de Recuperação Feminino (CRF), indicadas por membros do Conselho Penitenciário, e oito presas do Complexo Penitenciário de Santa Izabel, indicados pelo Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, foram submetidos à perícia no Centro de Perícias Científicas Renato Chaves. Não foi constatada a existência de sinais de tortura ou de maus tratos.
A corregedoria-geral do Depen possui um servidor atuando no Pará, em atividades de supervisão e orientação da atuação da FTIP junto ao sistema prisional. A Ouvidoria do Depen está à disposição para escutar relatos e acompanhou parte das inspeções técnicas do Copen em que foram ouvidas presas do CRF, que resultaram em exames periciais com 64 reeducandas.
Sindicâncias foram instauradas a fim de apurar as supostas denúncias. Caso sejam comprovados eventuais desvios de conduta, os agentes serão devidamente afastados de suas funções e responderão por processos administrativos.
O Depen/MJSP reafirma a confiança e o compromisso do trabalho realizado pelas forças tarefas de intervenção. Em 40 dias de atuação, foram realizados mais de 40 mil procedimentos. Entre 23.155 entrega de medicações, 10.235 procedimentos de enfermagem, 1.963 atendimentos médicos, 875 exames de tuberculose, 500 atendimentos odontológicos, entre outros.
Para dar celeridade aos cumprimentos judiciais, foram realizados 13.258 procedimentos, sendo 5.015 atendimentos com advogados e defensoria pública, 305 alvarás, emissão de 246 RGs e 136 CPFs, além de resultados como progressão de regime, realizações de audiências por videoconferências, escolta, entre outros. O número de materiais ilícitos apreendidos pela FTIP-PA é de 5428. Entre eles: cerca de R$ 30 mil, mais de 2 mil celulares, 13 armas de fogos, eletrônicos, entre outros.
Ressaltamos ainda a relevante atuação da FTIP na superação de graves crises Penitenciárias com atuação em diversos estados da federação (RN, RR, CE, AM e PA). Os servidores que atuam na FTIP são experientes por atuarem em outras crises.
Sobre o afastamento do coordenador da FTIP, Maycon Rottava, o Depen afirma que cumpriu de imediato a decisão judicial. O agente federal de execução penal, Marco Aurélio Avancini, foi designado para a função de coordenador da operação no Pará. O Depen solicitou à AGU que providencie os meios jurídicos necessários para a revisão da decisão judicial."
MPF reúne relatos, imagens e vídeos apontando indícios de torturas e maus tratos durante intervenção federal em presídios do Pará. — Foto: Reprodução / MPF