Matéria em referência O Editor |
Paula Cesarino Costa
Jornalista, foi diretora da Sucursal do Rio.
É ombudsman da Folha desde abril de 2016.
Publicado FSP 12 Agosto 2018
Na madrugada de 2 de agosto, a policial militar Juliane dos Santos Duarte, 27, desapareceu da favela de Paraisópolis, em São Paulo. Era seu primeiro dia de férias.
Juliane foi morta por criminosos depois de ter sido retirada de um bar, após ter se identificado como policial, para tentar recuperar um celular desaparecido. Ela ficou pelo menos um dia em poder desses homens antes do assassinato.
Sob o título “Policial Juliane teve seus últimos momentos com bebida, pegação e dança”, reportagem publicada na Folha no último dia 9 provocou uma forte onda de críticas por meio de mensagens e telefonemas à ombudsman, comentários no site e posts em redes sociais. Uniu numa mesma voz militantes feministas de esquerda e o candidato Jair Bolsonaro.
Baseada nas informações do boletim de ocorrência, o texto da Folha narra a participação da policial em um churrasco onde conheceu duas jovens, depois a ida para a casa de uma delas, a busca por cerveja, o deslocamento até um bar, onde teria conhecido outra moça, a ida ao banheiro e o anúncio de que era PM.
O caso em si, a reportagem em foco e a reação quase uníssona de crítica ao jornal levantam questões importantes: a qualidade e a intenção de um texto, a insensibilidade do jornal, a equivalência de tratamento e a questão de gênero.
A reportagem foi considerada “preconceituosa”, “desrespeitosa”, “difamatória”, “completamente gratuita e desnecessária a exposição da intimidade da vítima”, entre outros adjetivos. Mais de 70% dessas manifestações vieram de homens.
“Que importa quanto tempo a policial ficou no banheiro para o entendimento do crime? Que importa quem era a pessoa com quem “passou a trocar beijos”? A policial foi vítima e o que aconteceu antes nada tem a ver com o assassinato, em nada contribui para esclarecer em que circunstâncias foi morta”, escreveu o diplomata Sérgio Paulo Benevides.
O leitor Bruno Lages afirmou que o texto cria uma relação implícita de causa e efeito: se a mulher não tivesse dançado e beijado, talvez não tivesse sido morta. “Os desdobramentos não ditos são funestos: mulher que dança e beija talvez tenha parte da culpa na própria morte.” Se fosse homem, o texto publicado seria igual?
Alguns viram viés antipolícia da Folha, comparando com o que consideraram tratamento positivo do assassinato da vereadora Marielle Franco.
O editor do núcleo de Cidades, Eduardo Scolese, refutou que o texto contenha juízos de valor. “O texto conta o passo a passo da soldado Juliane antes de ter sido capturada e depois assassinada por criminosos.”
Para ele, a avaliação sobre a reportagem precisa considerar toda a cobertura. Falar em “desrespeito” ou “preconceito”, afirma, é ignorar a reportagem exclusiva “PM ficou ao menos um dia em poder de bandidos antes de ser assassinada” e o perfil “Assassinada, PM Sorriso era festeira, elogiada por chefes e queria ser da PF”.
Sobre o termo “pegação”, o editor explica que não condizia com o padrão lexical preconizado pela Folha, por ser coloquial demais, e por isso foi substituído por “PM Juliane teve últimos momentos livres com bebida, beijos e dança”.
O perfil é de fato respeitoso e elogioso, como afirma Scolese. Só que cada reportagem tem de ser analisada em seu contexto único. É ilusório ampliar o foco para uma série de textos porque nem todos leram todos os textos. A análise deve ser concentrada na experiência de leitura de cada um deles.
A reportagem sobre os últimos momentos de Juliane é justificável como pauta, mas indefensável como resultado. Fazia sentido levantar o que aconteceu imediatamente antes do desaparecimento da policial, seja para traçar melhor seu perfil, seja para levantar hipóteses para explicar sua morte.
O problema reside na forma como foi feita, nas escolhas dos termos e no tom do texto. Como ficou óbvio para tantos leitores, não afeitos à técnica jornalística, a equivocada forma narrativa final traz informações irrelevantes e induz a conclusões preconceituosas, expostas desde o título.
O texto esteve entre os mais lidos —e criticados— por dois dias, mas o jornal optou por não alterá-lo para a publicação na versão impressa. Segundo o editor, “a Folha é sensível à manifestação dos seus leitores, discutiu o caso internamente, mas não viu motivo para alterar substancialmente o teor da reportagem”.
Impressiona que, após tantas reações, o jornal não tenha admitido que —no mínimo— passava mensagem equivocada na construção jornalística ambígua, popularesca e sexualizada com que noticiou os atos da policial antes do crime. Ao se prender às suas intenções, a Folha pecou por arrogância e distanciamento dos leitores.
Como provocaram alguns, o caso deveria aprofundar a discussão sobre gênero nas Redações. Será que a maioria das repórteres e das editoras permitiria que texto como esse fosse publicado? É provável que não.
________________________________
Coimentário DefesaNet
Pedimos aos leitores que acesse a matéria :
Nesta matéria mesmo posteriomente editada permanece como a segunda morte da PMESP Juliane, onde o jornal transcende a todos os limites imagináveis do bom senso, ética e decência.
Agora no texto da Ombudsman da Folha de São Paulo a "Terceira Morte".
Recebi muitas mensagens com críticas ao texto publicado na @Folha sobre a PM Juliane, morta em SP. Estou recolhendo e organizando as críticas dos leitores e ouvindo a Redação. Escreverei sobre o tema na coluna de domingo.
— Folha Ombudsman (@folha_ombudsman) 10 de agosto de 2018
Beijos fora do lugar: Texto sobre PM assassinada sofre avalanche de críticas por parte de leitores https://t.co/7eixO8GYEL
— Folha Ombudsman (@folha_ombudsman) 12 de agosto de 2018