Ex-policiais feridos em serviço enfrentam depressão e sequelas após serem aposentados por invalidez

Júlia Dias Carneiro

"Viram a minha farda no banco de trás do carro e gritaram: 'É polícia! Perdeu!' Atiraram na minha cabeça à queima-roupa", conta o policial Rodrigo Vaz, aposentado precocemente por invalidez permanente. Foi baleado por bandidos quando voltava do trabalho para casa. "Só lembro de acordar no hospital com a minha mãe segurando o meu braço."

Reformado após apenas três anos de serviço, o ex-soldado ficou cego, perdeu o olfato, o paladar e desenvolveu graves problemas motores depois de sobreviver, "por milagre", a um tiro na têmpora direita em novembro de 2013. Vaz cresceu cercado de policiais que moravam em seu condomínio, na zona oeste do Rio.

Adulto, resolveu seguir os passos dos heróis de sua infância. Aos 34 anos, ele agora sofre de depressão e gasta toda a pensão da aposentadoria com remédios – para dormir, para a cicatrização do cérebro e para controlar as convulsões.

"Como policial, eu me sentia feliz por poder combater o crime e proteger direitos e deveres da sociedade. Eu me sentia útil", lembra.

"Hoje, eu só choro. Estou vivo ainda, mas a minha vida foi desmantelada", diz. "Eu não posso ver as pessoas na rua, o rosto da minha mãe, dos meus sobrinhos. Sou fanático por cinema, mas não posso ver um filme."

'Legião de mutilados'

Em meio à ampla comoção gerada pelas mortes de policiais no Rio – só neste ano, já foram mais de 60 vítimas fatais – há um grande contingente de policiais feridos que conseguem sobreviver e são frequentemente esquecidos pela sociedade.

Em 2017, de acordo com os cálculos da Comissão da Análise da Vitimização Policial, 163 PMs foram mortos em serviço ou de folga no Rio.

Já o número de feridos chegou a 784, o maior desde 2003. Somando os dados dos últimos cinco anos, 3.342 policiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) sofreram ferimentos – alguns tiveram lesões mais leves e puderam voltar ao serviço, enquanto outros ficaram com danos permanentes, caso de Vaz.

"Você tem uma legião de mutilados, paraplégicos, tetraplégicos, pessoas sem uma parte da cabeça, que de repente se veem de cama, dependendo de sondas, fraldas, cadeiras higiênicas", diz o coronel Fábio Cajueiro, presidente da Comissão da Análise da Vitimização Policial e à frente da Diretoria de Assistência Social da PMERJ.

A comissão acompanha as baixas na corporação há 24 anos e diagnostica "décadas de abandono". Em quase um quarto de século, foram 3.397 policiais mortos e 15.236 feridos, nos cálculos da comissão, que contabiliza todos os casos de mortes ou ferimentos não naturais, sejam em confrontos ou acidentes de trânsito.

"São pessoas no calor da juventude. Pela idade média, a maioria de mortos e feridos na PM são pessoas que teriam ainda 20 anos de serviço pela frente", afirma. "Imagina o custo que isso representa na folha de pagamento do Estado no longo prazo", diz o coronel.

Nos cálculos da comissão, as baixas que a polícia sofreu nos últimos 24 anos custaram R$ 2,32 bilhões aos cofres públicos – isso sem contabilizar gastos com próteses, medicamentos, fisioterapia, injeções e internação hospitalar, entre outros.

"É um custo que o Estado e a PM estão tendo e que poderia ser evitado com investimentos em prevenção. Em uma estrutura melhor para a polícia, em leis mais duras para coibir a impunidade. E, obviamente, em investimentos sociais", afirma. "Estamos empilhando corpos e mentes perturbadas. Isso é muito grave."

'Em segundo plano'

Rodrigo Vaz era lotado na UPP dos morros do Adeus e da Baiana, no Complexo do Alemão. Como policial, diz, foi um "combatente". Hoje, só consegue ir sozinho da sala para o quarto e do quarto para a sala. Passou a ser quase totalmente dependente de sua mãe, Regina Vaz, que largou o trabalho para cuidar dele.

"O Estado não se importa nem um pouco", diz Regina. "Quando me entregaram ele na saída do hospital, eu pensei que continuariam por perto me ajudando. Levou uns seis meses para cair a ficha que eu estava sozinha com ele em casa. Ninguém ia me procurar", conta ela.

Os amigos buscam animar Vaz e fazê-lo sair de casa. "Mas ir para a rua me magoa mais. Fico triste de ouvir o barulho das pessoas e não poder ver", lamenta o ex-soldado. "Se eu pudesse voltar a enxergar, eu seria o homem mais feliz do mundo."

Armas apreendidas de bandidos pelas Forças Armadas no Rio de Janeiro, dispostas no asfalto para serem destruídas, em junho de 2018

Abandono dos feridos

A situação de Vaz ecoa outros casos como o dele. De acordo com o policial reformado André Rios, policiais aposentados por invalidez sofrem com a escassez de recursos, com falta de assistência e com entraves legais e burocráticos para ter acesso a benefícios.

"Ficamos em segundo plano", diz Rios, que ficou paraplégico após ser atingido por quatro tiros em 2003, depois que bandidos fecharam seu carro para um assalto e o identificaram como policial.

"Para cada um que morre, uns seis policiais ficam gravemente feridos. O impacto é enorme, e o gasto que a administração pública tem com isso é astronômico", diz ele, que virou um forte defensor dos direitos de policiais feridos e está prestes a se formar em Direito.

De acordo com a PMERJ, os policiais são vítimas do mesmo cenário de violência que os demais cidadãos fluminenses – com o agravante de que, quando um agente de segurança é identificado como tal, o criminoso busca eliminá-lo.

Em nota, a corporação afirma que uma das ações principais para reduzir os danos aos policiais é trabalhar para ampliar o policiamento ostensivo de uma maneira geral e, assim, "dar mais segurança aos cidadãos e aos policiais".

Entre as ações tomadas neste sentido, a Polícia Militar cita a aquisição de novas viaturas, o retorno do Regime Adicional de Serviço (uma espécie de hora extra oficial) e treinamentos específicos voltados para reduzir comportamentos que podem colocar policiais em risco – como, por exemplo, um curso voltado para treinar o porte velado de armas durante horários de folga. "Além disso, todos os policiais militares de unidades da Região Metropolitana estão autorizados a utilizar seus coletes balísticos em dias de folga", diz a nota da PMERJ.

O policial Raphael Cabral teve a perna amputada ao ser atingido por uma granada em contronto com traficantes / Imagem: Acervo pessoal

Décimo ferido da equipe em um ano

Raphael Cabral foi contemporâneo de Rodrigo Vaz no curso de formação policial, trocando o terno e gravata que usava para vender colchões em uma loja pela farda azul da PM. "Eu ganhava bem, mas não ia conseguir fazer aquilo a vida inteira. Achei que na polícia eu poderia fazer diferença para a sociedade."

Assim como Vaz, Cabral acabou trabalhando em uma UPP, a da Vila Cruzeiro. E, assim como o amigo, também saiu precocemente, após ter a perna esquerda amputada. Em janeiro do ano passado, foi atingido por uma granada em confronto com traficantes na favela, e só sobreviveu porque sua equipe o socorreu e estancou o sangramento com um torniquete mesmo sob intensa troca de tiros. Sobrou "só um palmo de perna", conta ele.

"Em menos de um ano, eu fui o décimo da equipe (de 23 pessoas) a ser ferido. Tinha tiroteio pelo menos três vezes por dia", diz Cabral, que à época tinha 28 anos. Ele completou seus seis anos de polícia no hospital.

"Foram 25 dias internado, cinco cirurgias, três paradas cardíacas, doze bolsas de sangue e quatro colônias de bactéria", enumera.

Cabral foi pentacampeão carioca de taekwondo e ensinou a luta para mais de 200 crianças na primeira UPP em que foi lotado, no Morro do São João, na zona norte do Rio. "Naquela época, ainda tomávamos café com os moradores e dávamos aulas em projetos sociais", lembra ele. "O meu melhor chute era a perna esquerda". A perna foi substituída por uma prótese.

"Eu já tinha aceitado que morreria em breve. Sabia que mais cedo ou mais tarde uma daquelas munições ia me acertar. Por eu estar conformado, perder uma perna não foi nada para mim", diz.

Auxílio-invalidez seletivo

Cabral teve uma boa notícia nesta semana: foi, enfim, publicada no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro a autorização de seu auxílio-invalidez, um pagamento mensal de R$ 3 mil.

Ele diz que o auxílio vai lhe dar "uma vida mais digna", mas está longe de compensar a perda de um membro "nessa guerra que ninguém ganha", diz.

Já Rodrigo Vaz ainda não obteve o mesmo benefício e está lutando na Justiça.

O motivo é que Cabral é um caso de amputação, enquanto Vaz levou um tiro na cabeça. A lei 6.764 garante o auxílio por invalidez em casos de paraplegia, tetraplegia ou amputações, mas não para outros tipos de ferimento.

"A lei é mal feita", diz o coronel Cajueiro. "Se você for ferido em combate e perder um dos membros, ou se tornar cadeirante, recebe o auxílio. Mas se ficar com um buraco na cabeça, tiver convulsões, precisar substituir parte da calota cranial com próteses caríssimas, não recebe", critica.

Em 2014, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio adicionou um parágrafo à lei que, em tese, estende o benefício a outros casos de invalidez física ou mental permanente. Mas a Procuradoria-Geral do Estado questionou a constitucionalidade da mudança, que está suspensa até que tribunais superiores deliberem a respeito.

Da esquerda para a direita: Raphael Cabral, André Rios e Roberto Santa Rosa / Imagem: Acervo pessoal

'S.O.S. Veteranos'

Diante da solidão que se impõe aos inativos por invalidez, muitos buscam apoio em redes sociais ou grupos de WhatsApp – como o "S.O.S. Veteranos", que tem quase 80 ex-policiais afastados permanentemente. São cegos, amputados, lesionados na cabeça, tetraplégicos e paraplégicos, diz André Rios.

"As interações são importantes porque as pessoas ficam muito sozinhas", diz. "No início, ficam totalmente perdidas. Não sabem como proceder. Estão entrando em um mundo novo. Quem é solteiro acha que nunca mais vai arrumar mulher, quem é casado teme pelo futuro do relacionamento. Mas quando veem os outros casos, entendem que há vida após o ferimento. Veem que dá para encarar."

Rios, Cabral e Vaz não perderam o orgulho da profissão, mas mudaram, cada um à sua maneira, seu olhar sobre a atividade policial no Rio.

"É uma guerra muito injusta. A polícia não tem subsídios, não tem material humano nem bélico para viver essa guerra. Estamos em guerra, mas ninguém assume", diz Rios.

Vaz sente mágoa em relação a um Estado que "não dá condições para a polícia trabalhar" e "não dá subsistência" quando policiais ficam em estado como o dele. Aos mais jovens, aconselharia não entrar para a polícia. "A sociedade é hipócrita, não merece os policiais que tem. São homens guerreiros que dão sua vida para ela. As pessoas não os reconhecem."

Já Cabral diz ter desistido do Brasil. Depois de ter a perna amputada, passou por três outras situações de "quase-morte" – incluindo a fuga de um arrastão na avenida Brasil, e disparos contra seu carro ao entrar em uma favela por engano seguindo indicações do GPS. Agora, faz planos de sair do Brasil com a família. Para ele, ficar é estar "na fila da morte".

"O meu filho de 4 anos repete diariamente que quer ser policial. Apesar de eu ser apaixonado pela PM, não o incentivo. Ele pode ser policial em outro país", diz Cabral. "Essa sociedade não merece o trabalho do policial. Não sabe o preço que nós pagamos."

 

 

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