Recebidos como heróis, afegãos libertados de Guantánamo tentam retomar suas vidas

Dawood Azami

Nas ruas de Cabul e de outras províncias afegãs, poucas pessoas consultadas pela BBC haviam ouvido falar de Manhattan ou do World Trade Center – as duas torres derrubadas no atentado de 11 de setembro de 2011. Mas todas elas tinham ouvido falar de Guantánamo.

Cerca de 220 afegãos ficaram detidos na prisão da base militar americana. A maioria já voltou para casa, onde suas histórias de cárcere – e, em alguns casos, de abusos – têm tido um grande impacto.

"Milhares de pessoas das minhas aldeias e da região vieram me dar as boas-vindas. Apertei a mão de mais de 2 mil pessoas", conta Haji Shahzada Khan, ancião de Kandahar, sul do Afeganistão.

"As pessoas me receberam muito bem. Algumas me compraram cabeças de gado e o que conseguiam comprar", diz Izatullah Nasratyar, ex-combatente mujahedin, que na juventude ajudou a expulsar tropas soviéticas do Afeganistão com ajuda americana.

Alguns ex-detentos escreveram livros, que viraram best-sellers no Afeganistão e no Paquistão. Outros são mais reservados.

"Eles (americanos) fizeram coisas conosco que são contra a humanidade, os direitos humanos e o islã. Sequer consigo falar sobre isso", afirma Haji Nasrat Khan, pai de Izatullah.

Quando foi detido pelas tropas americanas, em 2003, já estava com mais de 70 anos e a saúde debilitada – e alega que não havia provas contra ele. "E não fui só eu, havia outros inocentes detidos."

Haji Shahzada também fala pouco. "Se falar a verdade sobre as condições lá, vai aumentar a preocupação e o sofrimento dos parentes de quem ainda está detido. Não posso contar a realidade da vida em Guantánamo."

'Privilégio da liberdade'

Mas a vontade de falar sobre a experiência no centro de detenção muda de ex-prisioneiro para ex-prisioneiro. Alguns chegaram a publicar seus relatos em livros – que viraram best-sellers no Afeganistão e no Paquistão – outros são bem mais reservados.

Ao que tudo indica, as experiências também foram variadas.

Alguns, os que seguiam as regras do centro de detenção, podiam conviver com outros detentos de seu bloco e aproveitaram para aprender e ler.

"A única boa memória de lá é que aprendi o Corão, aprendi a escrever e tive uma experiência diferente", conta Haji Ghalib, que passou quatro anos em Guantánamo.

Já Haji Ruhullah, líder tribal do leste afegão, pinta um quadro mais sombrio.

"Guantánamo não me tirou apenas a liberdade de movimento, mas outros direitos. Nem falar era permitido", diz. "Os guardas nos puniam quando líamos o Corão porque diziam que estávamos falando com os demais prisioneiros."

A maioria dos ex-detentos entrevistados pela BBC afirmou que não esperava sair de lá vivo. E dizem que se sentem renascidos.

"(Quando voltei ao Afeganistão) foi como voltar do mundo dos mortos", diz o ex-ministro do Comércio talebã Mawlawi Abdul Razaq, que passou cinco anos no presídio. "Lá não sabíamos nada do mundo exterior. As cartas de familiares eram geralmente censuradas."

Izatullah diz, surpreendentemente, que a experiência mudou sua perspectiva sobre a vida.

"A prisão me trouxe coisas boas: eu não era grato o bastante pelas dádivas que Alá nos dá. Eu não era grato a Deus pela liberdade, o sol ou (a possibilidade) de ir ao banheiro quando se quer. Mas lá, nas mãos de outros homens, eu percebi que Deus nos concede muitas dádivas. Eu entendi o privilégio da liberdade."

Passada a alegria de voltar para casa, a retomada da vida teve momentos amargos.

"Fui ver meus vinhedos após ser libertado, e muitos pés haviam secado", relembra Shahzada Khan. "Meus filhos pequenos não conseguiram cuidar de si mesmos durante a minha ausência. Foi nesse dia que me dei conta de que realmente havia estado preso."

Perdas

Alguns homens perderam seus empregos e meios de vida.

"Ninguém vai nos dar emprego – não trabalhei desde que voltei para casa", diz o ex-policial Ghalib. "Se foi provada nossa inocência, por que ninguém nos ajuda?"

Mesmo os que foram libertados sem jamais terem sido indiciados dizem ainda sofrer assédio de tropas americanas e afegãs, que suspeitam de seus elos com insurgentes.

Alguns ex-detentos foram mortos em ataques; outros voltaram a ser presos no Afeganistão, acusados de atividades "subversivas".

Cerca de 90 deles se uniram em 2012 na Associação de Ex-Detentos de Guantánamo no Afeganistão – "para nos apoiarmos e defendermos nossos direitos", alega Haji Ruhullah Wakil, líder do grupo.

"Nos encontramos com o presidente (afegão Hamid) Karzai, comandantes da Otan e autoridades americanas em Cabul para discutir nossos problemas e assegurá-los que não somos uma ameaça."

A mera existência de Guantánamo, no entanto, segue sendo uma ameaça – e um fato usado pelo Talebã para recrutar insurgentes.

Uma canção descreve um jovem talebã detido escrevendo uma carta para sua mãe.

"Sou prisioneiro na prisão de Cuba; nem de dia nem de noite consigo dormir, oh mãe", diz a música.

'Não posso perdoá-los'

Guantánamo ainda tem 155 detentos – já chegou a abrigar 800.

"Os detentos trazidos para cá foram capturados no campo de batalha. Os mantivemos aqui para afastá-los do campo de batalha", afirma o almirante Richard Butler, comandante da Força-Tarefa Conjunta, que coordena a prisão militar.

"Uma vez que a cadeia de comando decide que eles não precisam mais ficar presos por essa razão, eles são transferidos. Mas até lá não faço julgamento quanto à culpa ou inocência dos detentos."

Haji Ghalib voltou ao Afeganistão e se reencontrou com sua família. Mas, sem emprego e vivendo em um apartamento precário em Cabul, sua vida deu uma guinada radical para pior.

"Dois americanos me disseram que seu governo me pedia desculpas pelos cinco anos preso e que eu havia sido inocentado", ele conta. "Eu respondi: 'com todo meu coração, não posso perdoá-los'."

 

 

 

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