Publicado Jornal Valor 17 Maio 2011
Jamil Anderlini e Kathrin Hille | Financial Times
Com o seu potinho de geleia cheio de chá, um banquinho e uma braçadeira vermelha, a aposentada Wang Ying, de 50 anos, parece um improvável membro da infantaria do Estado policial chinês que se espalha pelo país.
Ela faz parte do comitê do bairro onde vive num subúrbio da cidade de Harbin, no nordeste chinês. E está cada vez mais atarefada desde que o governo retomou a prática da era de Mao de organizar os moradores para espionarem-se uns aos outros.
"Nossa comissão permaneceu relativamente dormente até 2008. Mas agora estamos mais próximos de como deveria ser – nós fazemos nosso dever e ficamos de olho em elementos que possam ser prejudiciais à estabilidade", diz Wang, que recebe um pagamento de 200 yuans (US$ 31) para ficar sentada na esquina de sua viela com duas outras mulheres aposentadas durante seis horas por dia.
Wang e suas companheiras são parte de uma massa subcontratada por uma máquina de segurança interna cada vez mais poderosa, que neste ano lançou uma ofensiva descrita por grupos defensores de direitos humanos como o pior ataque do país à liberdade de expressão e ao ativismo político pacífico em mais de uma década.
O desaparecimento e a detenção, no mês passado, de Ai Weiwei, o artista mais famoso da China contemporânea, nas mãos de agentes de segurança do Estado tem atraído a atenção mundial para essa operação e condenação da maioria dos governos ocidentais. Reino Unido, França, Alemanha, União Europeia e Austrália expressaram sérias preocupações. O agravamento da situação dos direitos humanos na China foi um tema prioritário para os EUA na reunião estratégica e econômica entre os dos países, concluído em Washington na semana passada.
Juntamente com Ai, dezenas – possivelmente centenas -, de advogados, ativistas e usuários de internet têm sido detidos sob amorfas acusações de "subversão". Alguns simplesmente "desapareceram", muitas vezes por nada mais do que expressar suas opiniões em artigos ou blogs.
Muita gente dentro e fora do país acredita que o Partido Comunista retomou uma postura mais autoritária após um longo período de relativa tolerância. Essa mudança, dizem, reflete-se em, e é agravada pelo, crescente poder do aparelho de segurança. Alguns acreditam também que isso pode ser reflexo de lutas de poder no topo do partido, cujo resultado poderia definir a forma como a China se comportará interna e internacionalmente nos próximos anos.
O catalisador da mais recente onda de repressão foi uma série de telefonemas anônimos via internet convocando para encontros com fins pacíficos da chamada "revolução de jasmim", para imitar as manifestações pela democracia que varre o mundo árabe. Embora tenham atraído apenas um punhado de participantes curiosos, a iniciativa resultou em uma grande demonstração de força oficial.
"Inicialmente, imaginávamos que a chama da revolução de jasmim não ganharia nenhum impulso aqui, mas após a reação aparentemente desproporcional do governo, começamos a perguntar se eles sabem de algo de que não sabemos", disse um alto diplomata ocidental em Pequim.
A maior parte da década passada foi caracterizada por crescimento econômico sem precedentes, maior abertura ao mundo, crescente consciência dos direitos individuais e foco em um sistema legal justo e operacional.
Em retrospecto, porém, a revolta contra o domínio chinês no Tibete em 2008 parece ter provocado uma escalada de reações mais intensas ao governo de partido único. A insurreição foi seguida por uma explosão ainda mais violenta na região de Xinjiang, de insatisfeita maioria muçulmana e rica em recursos naturais, pouco mais de um ano depois.
De acordo com fontes bem informadas sobre os serviços de segurança, a instabilidade nessas duas grandes províncias fronteiriças ocidentais, que compreende cerca de um quarto da massa terrestre chinesa, fortaleceu a influência da linha dura no governo, que defendeu respostas mais fortes a todas as fontes potenciais de instabilidade, inclusive os defensores de reforma política pacífica.
Artistas, advogados, ativistas e usuários de internet têm sido detidos sob amorfas acusações de "subversão"
Isso, por sua vez, resultou em maior presença do aparelho de segurança interna, que cresceu rapidamente nos últimos três anos.
A tendência coincidiu com uma série de eventos "delicados", em resposta aos quais as autoridades priorizaram a questão da estabilidade. Houve as Olimpíadas de 2008, o 20º aniversário do massacre da Praça da Paz Celestial, ocorrido em 1989; o 60º aniversário do regime comunista naquele ano, a Exposição Mundial de Xangai no ano passado e a escolha de Liu Xiaobo, um dissidente que está preso, para Nobel da Paz em 2010.
Nos últimos anos, o montante gasto com polícia de segurança interna, tribunais, forças paramilitares, pelotões de choque, agentes secretos, informantes, vigilância, censura sobre a internet e iniciativas análogas, disparou. Somando aproximadamente 624,4 bilhões de yuans para 2011, o valor agora supera o do orçamento militar, segundo dados do Ministério das Finanças. Dito de outra forma: a China agora gasta mais dinheiro na vigilância, repressão e perseguição contra seu próprio povo do que na proteção contra qualquer ameaça externa.
A ampliação da alocação de fundos ao crescente e enorme aparelho de segurança tem sido acompanhado de crescimento bem maior do poder da burocracia. Numa sociedade onde a ameaça da violência oficial continua a ser o garantidor de última instância do poder do Partido Comunista, "a manutenção da estabilidade" tornou-se uma preocupação em todos os níveis de governo.
"Neste momento, a China segue religiosamente o princípio de que estabilidade é mais importante do qualquer outra coisa", diz o professor Hu Xingdou, do Instituto de Tecnologia de Pequim. Mas, prossegue ele: "Existe excessiva ênfase na manutenção da estabilidade de curto prazo, e não muita em termos de reformas sistêmicas que contribuiriam para a manter paz e estabilidade em longo prazo".
Um profundo medo do "luan" (caos), que reinou durante a revolução cultural de 1966-1976 é uma poderosa força que molda as políticas atuais. A maioria dos chineses hoje nos mais altos escalões da liderança chinesa eram altos funcionários do governo à época do massacre na Praça da Paz Celestial, em 1989, e acreditam que a hesitação demonstrada pelos líderes do partido naquele momento permitiu que os protestos escapassem ao controle, o que acabou forçando o governo a enviar tanques.
Essa preocupação tem sido atiçada por uma burocracia de segurança cada vez mais poderosa, hoje mais influente nas decisões de como reagir à contestações ao status quo político. Essa burocracia intensificou o uso de punições extrajudiciais, sumiço de pessoas e outros métodos duros.
Gasto com a política de segurança já supera o orçamento militar; aumento coincide com levantes árabes
"Estamos testemunhando uma nova política do partido no que diz respeito ao sistema legal", diz o professor Donald Clarke, da Universidade George Washington e especialista em direito chinês. Na visão de Clarke, "parece que as forças de segurança foram instruídas a fazer o que entenderem necessário, sem serem questionadas por isso. Infelizmente, os advogados que poderiam defender os que estão sendo presos também estão sendo presos".
Uma das maiores preocupações em relação à mais recente repressão a grupos defensores dos direitos humanos e juristas é a pesada perseguição ao grupo de advogados que atuam em defesa dos direitos humanos e que até recentemente eram tolerados.
Inicialmente, apenas aqueles que estavam na mira das forças de segurança perceberam seu crescente poder. Zhao Lianhai, um ativista que formou um grupo de apoio a pais de crianças que adoeceram por beber leite em pó infantil contaminado com melamina em 2008, ficou surpreso ao ver helicópteros sobrevoando sua casa, quando a polícia tentou adverti-lo para não participar de campanhas públicas. "No passado, quando alguém causava problemas, haveriam dois policiais ou gente à paisana na porta de uma casa, mas agora eles têm equipamento pesado à disposição", disse ele.
No ano passado, porém, a intensificação das ações tornou-se mais perceptível. A polícia – assim como outras agências ou empresas que desenvolvem tarefas relacionadas à segurança – reforçaram seus quadros, receberam novos equipamentos e melhoraram as condições de trabalho.
Um dos sinais mais evidentes é a proliferação de câmeras de vigilância. No mês passado, o município de Chongqing, no oeste do país, elaborou um plano para expandir sua rede de câmeras de 310 mil para 510 mil em 2012. De acordo com Wang Zhijun, chefe da polícia de Chongqing, isso faz parte da maior nova rede de segurança instalada desde os ataques terroristas contra os EUA em 11 de setembro de 2001. Urumqi, capital de Xinjiang, onde quase 200 pessoas morreram nos motins de julho de 2009, completou a instalação de 40 mil câmeras no ano passado. A cidade de Guangzhou, no sul do país, um dos principais centros industriais exportadores, tem 270 mil câmeras.
A expansão do já inchado aparelho de segurança abrange iniciativas menos palpáveis, como a inclusão de um grande número de informantes na folha de pagamento do Estado. Após os tumultos em Xinjiang, as autoridades bloquearam o acesso à internet e a parte da rede de comunicações móveis na região durante quase um ano.
Pequim também reforçou a censura na internet em todos os níveis administrativos. A Grande Muralha Digital Chinesa, um sistema de filtragem que ajuda a bloquear sites hospedados fora do país, começou, em meses recentes, a interferir em um número muito maior de sites. Uma das vítimas foi o Google; seu serviço de buscas e seu serviço de e-mail são, agora, frenquentemente bloqueados.
Por trás disso, há um crescente exército de ciberpoliciais que supervisionam as mídias sociais e quadros de avisos digitais – bem como um uso disseminado de tecnologias avançadas de mineração de dados.
O governo ampliou as tradicionais escutas telefônicas e está, simultaneamente, utilizando tecnologias mais sofisticadas. Conversas estão sendo pesquisadas com um software que reconhece palavras-chave críticas, segundo fontes da empresa estatal de telecomunicações.
Alguns analistas e autoridades acreditam que o medo que Pequim tem de um contágio da "primavera árabe" está sendo usado pelas forças de segurança como uma desculpa para enviar uma mensagem a potenciais criadores de problemas às vésperas da data mais sensível de todas. A China teve apenas uma transição pacífica de liderança desde quando os comunistas assumiram o poder.
No ano que vem, quando Hu Jintao, presidente e secretário-geral do partido, passar as rédeas do país a seu sucessor, Xi Jinping, como quase certamente fará, os chineses tentarão a segunda trasferência pacífica.
Períodos anteriores de repressão frequentemente coincidiram com disputas acirradas na cúpula do partido. Após o desfecho dessas batalhas, tende a se instalar um período de relaxamento.
Em meio à disputa por posições envolvendo a mais alta liderança do país antecedendo a transferência do poder em 2012, o mundo teve vislumbres de um choque entre a linha dura, empenhada em esmagar dissidentes radicais, e líderes mais liberais, convencidos de que isso poderia provocar exatamente o que pretende evitar.
Um editorial publicado no fim de abril no "Diário do Povo", porta-voz oficial do partido, parafraseou Voltaire. "Não concordo com sua opinião, mas lutarei até a morte para proteger seu direito de manifestá-la", e exigiu maior tolerância de críticos interno. "Não devemos temer as críticas dos que apontam nossas falhas", disse o artigo. "Não podemos subjetivamente concluir que [quem nos critica] está trabalhando para se opor a nós."
Somente um líder de altíssimo escalão poderia ter aprovado tal editorial, e fervilham especulações sobre quem lançaria um desafio tão aberto aos mandarins do aparelho de segurança.
Muitos acreditam que a mensagem representa a opinião do primeiro-ministro Wen Jiabao, que se refere frequentemente à necessidade de "reforma política", mas parece frágil e isolado no topo do partido, e que muita gente no sistema suspeita não ser, absolutamente, um reformador.
Seja de onde vem essa voz de moderação, ela soa estridente e melancólica, em comparação com a mensagem retumbante da linha dura e do império de segurança interna que governa.
O problema da liderança é que, tendo criado como uma máquina de segurança tão abrangente e tendo identificado "estabilidade" rígida como objetivo primordial, ela tem dificuldades para não atacar qualquer coisa que se mova. (Tradução de Sergio Blum)
DefesaNet China reinventa sistema de vigilância da era Mao – Funcionários instalam câmera de vigilância em Kuhming: Big Brother cresce Link
China – Governo vê 'massas' como fontes de informações – Link |