Cássio Bruno
A população do Rio de Janeiro não é a única refém das milícias. Em pelo menos 11 estados brasileiros, há ações de grupos paramilitares armados e chefiados por agentes públicos da área de segurança, de acordo com levantamento feito pelo GLOBO, nas duas últimas semanas, com base em dados fornecidos por Ministérios Públicos e Ouvidorias de Polícia. Os milicianos atuam em territórios urbanos e rurais, onde impõem lei própria e serviços econômicos, além de se envolverem em assassinatos. Em alguns casos, como na Bahia, há suspeita de envolvimento de políticos.
As milícias estão organizadas na Paraíba, no Espírito Santo, no Ceará, em Mato Grosso do Sul, no Pará, em Pernambuco, em Alagoas, no Piauí, em Minas Gerais e em São Paulo, além da Bahia e do Rio. Os grupos agem com características diferentes em cada estado. O discurso para controlar as comunidades é parecido: eles extorquem dinheiro de moradores e comerciantes para oferecer segurança privada ilegal. Em troca da proteção, os milicianos prometem expulsar ou matar traficantes.
Um dos casos mais graves está em Salvador. Investigações do Ministério Público apontam que milicianos têm controle de 12 bairros do subúrbio da capital, entre eles Águas Claras, Fazenda Grande do Retiro e Cosme de Faria. Eles exploram o transporte alternativo e a distribuição de serviços de internet, de TV a cabo e de gás. O modo de operar é semelhante ao de grupos paramilitares do Rio. Vereadores, com base eleitoral na região, estão na mira dos promotores. Segundo o MP, os parlamentares estariam se beneficiando das milícias em eleições.
No Rio, após conclusão da CPI das Milícias, em dezembro de 2008, presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), a maioria das 225 pessoas denunciadas e indiciadas pelo Ministério Público e pela polícia, entre elas deputados e vereadores, está presa.
– Esses milicianos estão envolvidos, principalmente, com políticos, traficantes e com a agiotagem – diz a promotora Ediene Lousado, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas do MP, que prefere manter sob sigilo os nomes dos policiais investigados até a conclusão do inquérito.
Na Paraíba, policiais militares e agentes penitenciários fazem a segurança particular irregular de moradores e comerciantes na Região Metropolitana de João Pessoa. Apenas em outubro deste ano, foram registradas quatro denúncias sobre o assunto na Ouvidoria de Polícia. Fardados e com carros da corporação, os PMs escoltam supermercados, postos de gasolina, boates e casas de show mediante pagamento de propina. Segundo a própria ouvidoria, a maioria dos policiais é lotada no 5º Batalhão.
– Eles são organizados. Têm, inclusive, troca de plantão nestas escoltas. Vamos encaminhar as denúncias para o Ministério Público e para o Conselho Nacional de Justiça – revela a ouvidora de polícia, Vaudênia Paulino Lanfranchi.
Em SP, 20 policiais são investigados
Em São Paulo, promotores estão preocupados com a atuação das milícias. Eles investigam um grupo de cerca de 30 pessoas, entre elas 20 policiais militares, civis e federais, além de guardas civis metropolitanos, que estariam atuando na área central da capital. Eles são suspeitos de explorar comercialmente uma área do governo federal em que foram instalados boxes para a venda de produtos contrabandeados e falsificados. Além de cobrar ilegalmente pela locação do espaço, os acusados estariam cobrando uma taxa mensal dos comerciantes para manter a segurança do local. Quem se nega a pagar a taxa ou discorda das regras é ameaçado e até agredido.
O Ministério Público afirma que muitas vítimas não querem denunciar o problema, pois são imigrantes chineses ou coreanos ilegais. Os promotores ainda estão colhendo provas sobre o caso e ninguém foi preso, por enquanto. Há também uma outra investigação que indica que comerciantes da Rua 25 de Março – famosa pelo comércio popular – estão tendo que pagar propina a policiais e fiscais do município para que possam funcionar.
Corregedora nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon conta que as milícias estão por trás da maioria dos casos de violência contra magistrados brasileiros. Por isso, ela iniciou uma força-tarefa nos 27 estados para identificar e punir as ações de grupos paramilitares.
– A punição é a forma ideal de começar a erradicar isso. As milícias se fortalecem com a impunidade – lembra a ministra.
Eliana Calmon iniciou um mapeamento para tentar acelerar o andamento de processos envolvendo policiais militares e civis. Segundo ela, boa parte dos crimes envolvendo milicianos está parada na Justiça.
– A minha maior preocupação é com o Poder Judiciário. Temos reclamações de processos envolvendo policiais que estão parados com o objetivo de serem prescritos – afirma a ministra.
Ministro admite problema
Eliana Calmon alerta para casos ocorridos na Bahia, em Goiás e no Ceará. Neste último estado, pelo menos 30 policiais são réus acusados de venderem segurança privada ilegal:
– Queremos acabar com esse derramamento de sangue. Uma das milícias do Ceará é comandada por um major da polícia.
A promotora de Justiça Joseana França, membro-auxiliar da Corregedoria do Conselho Nacional do Ministério Público, faz um alerta:
– Em um primeiro momento, os milicianos dão proteção a moradores e comerciantes angariando simpatia. Eles matam ou expulsam os bandidos das comunidades com aquele discurso de levar a tranquilidade. Os legisladores precisam rever essa discussão.
Na Câmara, ainda tramita, desde 2007, um projeto de lei, de autoria do deputado federal Luiz Couto (PT-PB), que torna as milícias e os grupos de extermínio crimes federais, com até oito anos de prisão. Um dos artigos também pede punição de até dois anos de detenção para a oferta ilegal de serviço de segurança pública ou patrimonial, podendo a pena ser agravada em um terço caso seja cometido por servidores públicos, civis ou militares.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, admite o problema, mas lembra que a Polícia Federal está dando apoio aos governos estaduais para combater as ações de milicianos. Cardozo cita o caso do Rio, onde existe uma parceria entre o governo federal e a Secretaria Estadual de Segurança Pública.
– Infelizmente, é uma realidade no país. Estamos trabalhando com os governos para combater estas milícias ou organizações criminosas. Este é um grande desafio. Temos que agir com rigor, coragem, competência e eficácia – ressalta o ministro.
Para Paulo Baía, sociólogo e cientista político da Universidade Federal do Rio (UFRJ), as milícias são uma reconfiguração da pistolagem e dos esquadrões da morte comandados por policiais:
– As milícias funcionam como a máfia italiana. O poder público vende a autoridade.
Violência contra índios em MS
Os números confirmam a violência no campo e a atuação de milicianos em Mato Grosso do Sul: nos últimos oito anos, dos 456 índios assassinados no país, 250 eram do sul do estado. O levantamento, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aponta como motivo das mortes os conflitos entre pistoleiros contratados por fazendeiros e índios expulsos de suas reservas. O crescimento da violência em áreas indígenas motivou a abertura de inquérito pelo Ministério Público Federal.
As mortes se concentram em reservas na fronteira com o Paraguai. Dourados é uma das regiões mais violentas. Segundo o coordenador do Cimi, Flávio Vicente Machado, as milícias são formadas por pistoleiros paraguaios contratados por fazendeiros. Os grupos expulsam os índios e fazem segurança ilegal para fazendas.
Quando não matam, os pistoleiros queimam aldeias e plantações, e derrubam barracas. Expulsos das reservas, índios moram em acampamentos.
— A violência só será combatida com a demarcação das reservas — afirmou Flávio Machado.
No estado do Pará, os grupos de pistoleiros agem contra colonos em assentamentos.
— Os conflitos ocorrem por interesses de madeireiros, fazendeiros e mineradoras — disse a senadora Marinor Brito (PSOL).