ONU diz que legalização da maconha pelo Uruguai viola tratados

O órgão das Nações Unidas que vigia o cumprimento dos convênios internacionais sobre drogas advertiu nesta quarta-feira o Uruguai que sua lei para regular a produção, a venda e o consumo de maconha viola os tratados internacionais assinados pelo país.

A Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife) lamentou, em comunicado emitido em Viena, a aprovação da lei por um país que assinou as convenções internacionais sobre drogas, e garante que não foi levado em conta o impacto negativo na sociedade da legalização.

Raymond Yans, presidente da Jife, mostrou na nota sua "surpresa" ao saber que "um governo que é um parceiro ativo na cooperação internacional e na manutenção do Estado de direito internacional, tenha decidido conscientemente romper as disposições legais universalmente estipuladas".

Ao legalizar maconha, Uruguai vai na contramão dos vizinhos e quer ser modelo

O Senado do Uruguai aprovou na noite desta terça-feira (10/12), por 16 votos a favor e 13 contrários, a lei que legaliza a compra, venda e cultivo de maconha no país. Com a aprovação, a nação governada por José "Pepe" Mujica é a primeira do mundo em que o Estado assume o controle sobre o processo de produção, distribuição e comercialização da erva.

Com a medida, o governo uruguaio pretende desarticular parte do narcotráfico no país – estimado em cerca de 30 milhões de dólares ao ano – e controlar o consumo da droga. A nova lei reforça a agenda progressista do país, que recentemente legalizou o aborto e também o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Especialistas ouvidos pela DW dizem que a experiência do Uruguai, se der certo, deverá servir de modelo para países vizinhos como o Brasil e que a nova lei adotada pelo governo em Montevidéu mostra que a atual política de combate às drogas e ao narcotráfico, por meio da repressão, não deu os resultados esperados.

"As várias décadas de combate às drogas consumiram bilhões de dólares, mataram milhares de pessoas, abriram feridas nas sociedades e o resultado foi o crescimento do consumo e do poder dos cartéis", diz o cientista político Ricardo Sennes, da PUC-SP.

"Alguns países levaram a discussão a patamares avançados e estão ousando mudar as suas estratégias. O Uruguai está entre esses países que estão assumindo o risco, inclusive, de serem os únicos da região com essa política", acrescenta.

O especialista diz, ainda, que o Uruguai não está entre os países mais afetados pela produção, comércio e consumo de drogas e, assim, pode decidir em um ambiente com menos pressão do que outros países onde o problema das drogas e da violência relacionada é maior. A dimensão territorial do país também favorece um controle mais estrito.

"É, sem dúvida, um modelo positivo e ousado, mas os desafios mesmo estão em equacionar os problemas na região Andina e na América Central, onde a questão das drogas se mistura com temas como guerrilha e ameaça à ordem pública e ao Estado. Se essa política der certo no Uruguai, as chances de experiências similares em outros países aumentam", explica Sennes.

Estado vai controlar desde a produção até a venda

Por meio do recém-criado Instituto de Regulação e Controle da Maconha (IRCCA, em espanhol), o governo vai controlar toda a cadeia – desde a produção até a venda – e distribuir três tipos de permissão: para a produção, a comercialização e o consumo pessoal. A expectativa é que a lei seja sancionada pelo presidente Mujica em 120 dias e implementada a partir do segundo quadrimestre de 2014.

A permissão de acesso à substância se dará por meio de quatro vias: autocultivo (de até seis plantas), compra de no máximo 40 gramas por mês em locais autorizados, uso medicinal por meio de autorização do Ministério da Saúde ou produção por clubes onde se poderá cultivar, em grupo, uma quantidade de plantas proporcional ao número de membros.

A Junta Nacional de Drogas do Uruguai prevê a comercialização de quatro ou cinco variedades de maconha a um dólar por grama – preço similar ao cobrado no mercado negro. A venda não será permitida para estrangeiros, só para residentes no país. Dessa forma, o Uruguai pretende evitar o "turismo da maconha", como ocorre, por exemplo, na Holanda.

O consumo de maconha no Uruguai é permitido há 40 anos e, de acordo com números oficiais, cerca de 18.700 pessoas consomem a erva diariamente e 184 mil afirmaram que a consumiram alguma vez no último ano. De acordo com pesquisas de opinião da empresa Equipos Consultores divulgada antes da aprovação da legislação pelo Senado, 58% dos uruguaios são contra a nova lei.

"Mesmo a população sendo veladamente contrária à lei, principalmente pela predominância católica no país, o projeto causou mais debate político do que hostilizações nas ruas", afirma o professor de comunicação política Roberto Gondo, da Universidade Mackenzie.

Pressão de países vizinhos

Em entrevistas dadas antes da aprovação pelo Senado, o presidente Mujica chegou a admitir que houve pressão de países vizinhos, entre os quais o Brasil, que temiam que a maconha uruguaia entrasse no território de forma indiscriminada. Um deputado brasileiro chegou, ainda, a realizar um discurso no Senado uruguaio contra a aprovação da legislação.

Mesmo assim, especialistas dizem que a lei adotada pelo Uruguai não deve prejudicar o Brasil, já que o país é vulnerável em escala muito superior às pressões das práticas bolivianas, peruanas e colombianas, principalmente em relação à cocaína e crack.

"O Uruguai é uma fração pequena nessa equação e não creio que será problema. Maconha não está entre os principais problemas para a segurança e saúde pública no Brasil. O crack e a cocaína, sim", explicou Sennes, da PUC-SP.

Para o cientista político Valeriano Costa, da Unicamp, caso a tentativa do Uruguai seja positiva com a criação de um comércio legal e controlado – e esta política não se mostre pior do que o atual – poderá ser aberto um precedente importante para que países vizinhos também possam implementar a prática.

"Haverá um novo nicho de produção legal, com a geração de lucro para empresas e impostos para o governo. E isso deverá estimular outros países a tentar fazer isso também", diz Costa. "Porém, há um risco bem moderado de que a nova política não dê certo. Mas, uma volta à política anterior [uso da repressão] seria um fracasso, mas não um desastre. É melhor arriscar, pois os custos de um fracasso são muito menores do que os potenciais benefícios."

 

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