Faroeste Caboclo – Furto de gado desafia repressão


 

Nota DefesaNet,

O jornalista Carlos Wagner é o único especializado em Fronteiras no Brasil.

Série de matérias publicadas no encarte Rural do jornal Zero Hora, em 08NOV13:

Faroeste Caboclo – Caça ao Rebanho Perdido Link

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O Editor

CARLOS WAGNER
carlos.wagner@zerohora.com.br

 
Policiais, fazendeiros e historiadores costumam dizer que o furto de gado, atividade conhecida como abigeato, é um crime que existe desde antes da fundação do Rio Grande do Sul.

Descontada uma eventual imprecisão histórica, é fato que bandos de abigeatários não só sobrevivem há séculos como também chegaram aos dias atuais exibindo maior eficiência nos furtos. Para isso, aliaram-se a quadrilhas que têm outros negócios ilegais e fizeram com que a carne chegasse com mais rapidez ao consumidor.

No princípio, o objetivo do furto era alimentar a família. Era conhecido como abigeato de garupa (veja quadro). Mais tarde, a carne passou a ser vendida aos açougues nas periferias. Hoje, os abigeatários transportam o gado para centros clandestinos de abate.

Entre os motivos que contribuíram para a perenidade desse de crime estão a dificuldade de enquadrar os abigeatários em crimes graves do Código Penal – como formação de quadrilha –, falta de estrutura na investigação e problemas na identificação da procedência da carne.

– É impossível colocar um chip eletrônico em cada pedaço de carne – lamenta o delegado Cristiano Ribeiro Ritta, titular da Delegacia Especializada em Roubos, Furtos, Entorpecentes e Capturas (Defrec) de Bagé.

Nesta semana, deputados gaúchos aprovaram um projeto de lei que determina a especificação do abigeato nos registros dos índices de criminalidade do Estado. O objetivo é dimensionar melhor o problema para desenhar melhores estratégias de reação. Outra proposta, que tem gerado polêmica, prevê a identificação obrigatória do rebanho. O texto original foi retirado da Assembleia. Para Anna Suñé, coordenadora da Câmara Setorial da Carne da Secretaria da Agricultura, a ferramenta "ajudaria muito" no combate ao crime. O brinco colocado no gado dificultaria a legalização do animal furtado, hoje feita com a emissão de nota fiscal fria. O Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), do governo federal, é voluntário e existe em 153 das 370 mil propriedades rurais gaúchas. No país, 1.687 propriedades estão no Sisbov – 0,5% do total. A baixa adesão está relacionada ao custo.

– No Uruguai, onde o procedimento se tornou obrigatório, o abigeato caiu mais de 40% – afirma Anna.

CERCA DE 14 MIL CABEÇAS DE GADO LEVADAS POR ANO


Segundo a Secretaria de Justiça e Segurança, cerca de 14 mil cabeças de gado são furtadas ao ano no Estado, onde o rebanho chega perto de 14 milhões. Embora corresponda a uma fração do total, o produto do crime é um risco para a saúde pública, diz professor Eduardo Cesar Todo, do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em séculos de enfrentamento, ladrões de gado têm levado vantagem Embora as autoridades conheçam os caminhos que levam a carne do abigeato ao prato do consumidor, não conseguem desmontar os esquemas.

Vítima virou grife de carne roubada

A cada três meses, uma conversa se espalha entre os receptadores de gado furtado na Campanha, em especial em Dom Pedrito:

– Tem carne do Pötter.

O nome é uma garantia de produto macio e de alta qualidade.

– Virei grife de abigeatário. Os ladrões estabeleceram uma espécie de rodízio entre pecuaristas da região para furtar gado. Eu perco 20 cabeças por ano, todas de raça – conta Valter José Pötter, 64 anos, da Estância Guatambu.

– Eu e os meus vizinhos contratamos seguranças que ficam rodando de moto nas estradinhas de chão batido da região e informam as autoridades sobre qualquer movimentação suspeita – comenta o pecuarista.

O momento de maior tensão é quando os animais prontos para o abate são separados do resto do rebanho e ficam aguardando o caminhão para serem levados ao frigorífico.

Na tentativa de não chamar atenção dos ladrões, os peões são orientados a fazer a separação do gado gordo de maneira discreta. O procedimento nem sempre dá certo, porque os abigeatários, na sua maioria homens do campo, conhecem as rotinas das estâncias.

Colecionador de ocorrências
 

Estanislau Mendes Gonçalves, que vive em Vista Alegre, localidade às margens da Estrada da Serrilhada, em Bagé, não é um grande estancieiro, tem uma pequena propriedade. Nem por isso está livre da ação dos ladrões que furtam gado.

– Tenho aqui, dentro de uma pastinha, 60 ocorrências policiais que registrei nos últimos anos por ter sido vítima de abigeatários – conta.

Ele já perdeu 500 animais, a maioria vacas leiteiras. Em uma das investidas, como sinal de protesto por uma das vacas ser magra, os ladrões cortaram as patas e deixaram o animal agonizando no pasto.

– Fizeram uma malvadeza com o bicho só para debochar de mim – lamenta o produtor.


 

A EVOLUÇÃO DO CRIME NO ESTADO
1. PROPRIEDADES CERCADAS
– Até 1880, a carne não tinha preço no mercado, as fazendas não eram cercadas e os rebanhos viviam soltos no campo. Os ladrões de gado vendiam o couro e o sebo e deixavam a carne apodrecendo no campo.
Depois, a carne ganhou preço internacional e os uruguaios cercaram suas fazendas, no que foram seguidos pelos proprietários de terra no Rio Grande do Sul.
2. EM TEMPOS DE REVOLUÇÃO
– A Revolução Farroupilha (1835-1845) tornou rotina a “desapropriação de rebanhos” para alimentar as tropas. Terminada a guerra, o abigeato se transformou em preocupação para os fazendeiros.
3. O ABIGEATO DE GARUPA
– Entre os anos 1930 e 1960, o gado furtado servia para alimentar as famílias dos ladrões. Eles levavam o animal (geralmente uma ovelha) na garupa do cavalo.
4. FORMAÇÃO DE QUADRILHAS
– Nos anos 1960, houve aumento no êxodo rural, gerando desigualdade econômica nas cidades. Os furtos passam a servir para abastecer os açougues das periferias. É neste período que começam a se criar bandos de abigeatários.
5. O CRIME ORGANIZADO
– Nos anos 2000, as quadrilhas de ladrões de gado se integraram a outros bandos, passando a ser um elo do crime organizado.
 

 

COMO É FEITA A LEGALIZAÇÃO
1. EMISSÃO DA NOTA
Bloco do produtor, usado para controlar o comércio, é fácil de obter.
– O problema: as informações que identificam o animal são gerais – idade aproximada, quantidade e destino. Dados como pelagem e raça são opcionais.
2. ENTREGA À INSPETORIA
Venda é lançada no Sistema de Defesa Agropecuária do Estado, onde cada propriedade tem uma ficha. Se a quantidade de gado existe na propriedade e as vacinas estão em dia, é fornecida uma Guia de Trânsito Animal (GTA), que autoriza o transporte.
– O problema: os dados do cadastro são informados pelo produtor – ou pelo ladrão.
3. TRANSPORTE COM GTA
Se a carga for parada, os documentos estarão em dia.
O problema: as informações de identificação usadas na GTA são as mesmas da nota fiscal.

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