Márcio Sampaio de Castro
Em 1945, nascia dos escombros do maior conflito da história moderna a Organização das Nações Unidas, uma instituição que deveria acertar naquilo em que sua predecessora, a Liga das Nações, havia falhado: garantir que uma nova carnificina jamais voltasse a ocorrer. A Liga havia sido criada no fim da Primeira Guerra Mundial, inspirada em dois princípios ambíguos.
Por um lado, visava aproximar os países em um foro permanente de discussões. Por outro, servia de instrumento para imputar aos vencidos punições e exigências de compensações severas, o que, reconhecidamente, acabaria servindo de estopim para a deflagração da Segunda Guerra.
Até aí, não há novidades para as pessoas minimamente versadas no tema. O que muita gente desconhece é que o Brasil chegou a ser seriamente cogitado como um sexto membro permanente do Conselho de Segurança da ONU na Conferência de Dumbarton Oaks, realizada entre agosto e outubro de 1944, nos Estados Unidos.
Esta e outras informações dos bastidores dos históricos encontros que selaram a configuração do mundo no pós-guerra estão presentes no recém-lançado "O Sexto Membro Permanente".
No livro, com muitas informações inéditas para o público brasileiro, o autor procura aliar o rigor da pesquisa histórica a informações que iluminam algumas nuances das intrincadas negociações do mundo diplomático.
No caso das Nações Unidas, o maior entusiasta de sua criação, já no início de 1941, era o presidente americano, Franklin Delano Roosevelt. O criador do New Deal percebera desde logo que os Estados Unidos não conseguiriam manter sua tradicional posição isolacionista, voltando-se, no máximo, para as questões do continente americano, enquanto o resto do planeta mantinha-se em convulsão. A guerra inevitavelmente acabaria por arrastar o país, que não poderia voltar a desperdiçar a chance de projetar-se como grande líder global, como havia acontecido em 1919, quando desprezou a Liga das Nações.
Mesmo com a ameaça dos aviões e submarinos alemães e das limitações naturais dos transportes da época, Roosevelt e seus emissários saíram a campo, deslocando-se para lugares tão diversos como Londres, Moscou, Casablanca e Teerã, enquanto o conflito tinha curso. Em um desses deslocamentos, o presidente americano desembarcou em Natal, no Rio Grande do Norte, para o seu lendário encontro com Getúlio Vargas, em janeiro de 1943.
Simbolicamente, o encontro marcaria a autorização formal para que mais de 5 mil militares dos Estados Unidos atuassem em território brasileiro, na base aérea de Parnamirim (ali permaneceram até a derrota da Alemanha). Valeria também para que os presidentes firmassem o compromisso de instalação da Companhia Siderúrgica Nacional e tratassem da criação de uma força expedicionária brasileira. Já no fim do encontro, Roosevelt fez um convite informal para que o Brasil participasse das conferências de paz que levariam à criação das Nações Unidas.
De acordo com a doutrina desenhada pelo chanceler Osvaldo Aranha na época, a aproximação do país aos interesses americanos deveria ser automática, garantindo-se, em contrapartida, um protagonismo regional brasileiro. A Casa Branca também via com bons olhos essa relação, uma vez que o alinhamento informal da Argentina às potências do Eixo servia como fonte de grande inquietação.
Não obstante serem extremamente cordiais as relações entre Brasil e Estados Unidos, a aproximação do fim do conflito gerava uma série de imperativos, que, até a ratificação da Carta da ONU, se mostrariam incontornáveis sob a perspectiva do pragmatismo da realpolitik. É neste ponto que aparece uma das maiores virtudes do trabalho de Vargas Garcia.
Roosevelt chegou a fazer gestões junto a seus assessores diretos sobre o tema e lançou balões de ensaio em direção aos representantes russos e britânicos. Mas a ideia de inclusão do Brasil como membro permanente do conselho a ser instituído foi firmemente rechaçada pelos outros dois aliados.
O desenho de entendimento feito em Dumbarton Oaks, ratificado no encontro de Yalta, em fevereiro de 1945, com a definição do direito exclusivo do uso do poder de veto aos membros permanentes do Conselho de Segurança, baseava-se na ideia de predomínio dos "quatro policiais":
Estados Unidos e Rússia, por seu incontestável poderio militar; Inglaterra, por seu inquestionável sacrifício e pelo seu ainda existente império ultramarino; e China, pela necessidade de inclusão de um importante país asiático que fizesse um contrapeso a um eventual ressurgimento japonês no futuro. Mesmo a França, naquele momento, era apenas cogitada para ocupar em momento oportuno a vaga de um quinto membro permanente, para fazer sombra à ameaça Soviética na Europa continental.
Como lembra Vargas Garcia, a ONU não nascia como um apêndice do sistema que surgiria no pós-guerra, e sim como o seu núcleo. Neste concerto, não havia espaço para que países sem expressão significativa e, principalmente, sem um exército com menos de 5 milhões de homens, no dizer do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, pudessem ocupar um lugar de destaque na nova ordem mundial.
O fato é que todo esse embate foi travado à revelia não só do Brasil, mas também de todos os demais 46 países que ratificaram a carta de fundação do organismo ao lado dos "quatro policiais".
É provável que, há duas ou três décadas, o livro de Vargas Garcia não provocasse mais do que uma curiosidade de verbete enciclopédico, mas em tempos de Brics, de questionamento das configurações estabelecidas na ordem do pós-guerra e demandas por transformações na governança global, bem vale a pena o mergulho no conhecimento dos bastidores daqueles dias que moldaram o mundo tal qual o conhecemos hoje.
"O Sexto Membro Permanente – O Brasil e a Criação da ONU"