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Lawrence da Arábia – Princípios da Insurreição.

 

Frederico Aranha
Advogado e Historiador
aranha.frederico@gmail.com

Em 1946, o General Raoul Salan encontrou inúmeras vezes Vo Nguyen Giap, o General vietnamita que conduziria as operações militares contra os franceses até o desfecho em Dien Bien Phu. Ambos eram membros da missão internacional reunida para supervisionar a restauração da autoridade francesa na Conchinchina. Salan comandaria de maio de 1951 a maio de 1953 o corpo expedicionário francês enviado à região. Conduziu a última ação militar de sucesso em outubro de 1952: a ofensiva Operação Lorraine II, durante a qual forças francesas e grupos de montanheses irregulares devastaram o vale do Rio Vermelho e regiões florestais do Vietnam do Norte. No ano seguinte ele passaria o comando do corpo expedicionário ao desafortunado General Henri-Eugène Navarre que  presidiu o desastre de Dien Bien Phu.   

              
              

Coronel T.E. Lawrence CB, DSO


Salan ficou impressionado com a influência de um homem – T.E. Lawrence – no pensamento militar de Giap. Confessou ele a Salan que o livro Seven Pillars of Wisdom (Os sete Pilares da Sabedoria) de Lawrence “é meu evangelho de combate e nunca me separo dele”. A essência da teoria da guerrilha que inspirou Giap pode ser encontrada em duas fontes: a primeira é ao longo do próprio livro, notadamente no capítulo XXXIII; a segunda é um artigo titulado The Evolution of a Revolt publicado em outubro de 1920 no Army Quarterly and Defence Journal. Livro e artigo baseiam-se nas reflexões e avaliações de caráter prático de Lawrence traduzindo as complexas situações enfrentadas com sucesso no comando de forças árabes em operação na região do Hejaz em 1917, no coração do deserto saudita.
                  
Por essa época, Lawrence já vinha assessorando e liderando por mais de um ano levas de beduinos e árabes em combate contra as forças turcas. Com base nessa experiência deduziu dois princípios que constituiram a base teórica e a vertente para todas suas ideias ligadas à condução de uma insurreição. Lawrence convenceu-se de que tropas irregulares são incapazes de defender uma posição no campo contra forças convencionais e ademais de atacar eficazmente uma posição fortemente defendida pelas mesmas forças. Se esses preceitos eram corretos, ponderava Lawrence, qual o valor das forças irregulares para a guerra? Tornou-se a pergunta de partida que teria de responder por primeiro.
                 
Reconheceu que, como qualquer outro oficial educado e treinado de acordo com o pensamento e as tradições militares ocidentais, sua atitude face à guerra era dominada pelo dogma do aniquilamento, quer dizer uma obsessão por o princípio da guerra moderna consistente em localizar o exército inimigo, o centro do seu poder e destruí-lo em combate.

 No entanto, Lawrence percebeu que apesar de não haver ocorrido nenhuma batalha de aniquilamento os árabes estavam vencendo o conflito:(…) quanto mais eu pensava a respeito, mais me convencia que havíamos ganhado a guerra do Hejaz. Ocupavamos mais de noventa por cento do território. Os turcos dominavam o restante… Estão confortavelmente instalados (em Medina); se os aprisionarmos, nos custarão suprimentos e tropas para alimentá-los e guardá-los no Egito… Sob qualquer ponto de vista eles estão muito bem onde estão, apreciando Medina e querendo mantê-la. Deixemos que fiquem por lá!
                 
Interrogou-se se não haveria guerras diferentes da guerra de aniquilação que generais franceses como Ferdinand Foch e outros contemporâneos sobre elas escreviam e advogavam com tanto entusiasmo e estavam praticando na Europa, na Frente Ocidental, com resultados desastrosos. Concluiu que o primeiro fator determinante numa guerra era o objetivo pelo qual era deflagrada.

A aniquilação dos turcos não era o objetivo dos árabes, nem tinham eles capacidade para tal. O escopo era de natureza geo-estratégica: ocupar o máximo possível de território no Oriente Médio. Portanto, (…) se o alvo estratégico era geográfico ao invés da destruição do exército turco, o papel dos irregulares ganhava novos contornos. Sendo assim, questionou-se,qual missão caberia à insurgência árabe numa guerra de ocupação?
                 
Para responder, desenvolveu um simples arcabouço conceitual, um tipo de painel mental abrigando várias teorias e ideias relacionadas entre si com suficiente estrutura ensejando pensá-las em conjunto, como um todo coerente. O painel de Lawrence consistia de três conceitos ou categorias analíticas. Denominou cada um desses três ganchos conceituais de – o algébrico, o biológico e o psicológico.
                 
Por algébrico, entendia os fatores espaço-temporais, aqueles sujeitos a cálculo. Definiu qual seria a extenção de território que os árabes necessitariam conquistar – cerca de 320.000 km² e de como os turcos fariam para defendê-lo. Concluiu que exigiria um posto fortificado para 10 km², cada um contando com não menos de 20 soldados perfazendo mais de 600.000 homens para proporcionar uma defesa adequada.

Os turcos não tinham mais de 100.000 soldados concentrados em Medina e arredores; além do mais com sua bagagem mental dominada por ideias de batalhas de aniquilamento, consideravam a erradicação da rebelião desde uma perspectiva de guerra total.  Isso seria um erro fatal, deduziu, por que fazer guerra a uma rebelião era lento e incômodo, como tomar sopa com faca.
                 
O biológico era o segundo elemento na cadeia conceitual, expressaõ que trocou pelo termo “bionômico” por representar melhor a ideia de desgaste e fricção no seio de um sistema militar. Lawrence convenceu-se de que ao invés de tentar destruir o exército turco os árabes deveriam simplesmente debilitá-lo. Esgotamento, não destruição, seria a palavra de ordem. Ataques diretos à infraestrutura e ao equipamento militar do inimigo seria o objetivo: (…) a destruição de uma ponte ou via férrea turca, de uma metralhadora, de um canhão ou de munições e explosivos, será muito mais vantajoso para nós do que a morte de um turco. Dessa forma, a fragilidade do irregular no combate convencional tornar-se-ia irrelevante, pois passariam a atacar somente o material dos turcos ao alcance.

A chave para o sucesso dessa estratégia era o perfeito conhecimento do inimigo, ou seja, a necessidade de um serviço de informações atuante. Lawrence, ele próprio um oficial de inteligência, prescreveu (…) que o conhecimento do inimigo deveria ser completo, perfeito, não deixando qualquer margem ao acaso. Temos de concentrar nossos maiores esforços nesse sentido. Deveremos nos empenhar mais do que um estado-maior comum na obtenção de informações. Qualquer outra missão é de menor importância.
                
O último detalhe da estrutura conceitual era o psicológico. Lawrence entendia que numa insurgência a verdadeira batalha era o ataque às mentes, ao espírito do oponente. Significava também obter sustentação moral no seio na população, dessa forma mobilizando-a para a rebelião.
            
À luz dessa análise desenvolveu um plano básico mantido virtualmente até o fim da guerra. Tratava-se de simplesmente impor aos turcos o fardo de uma defesa demorada e constante que terminaria por esgotá-los. O emprego de pequenas unidades agressivas e altamente móveis constituia o meio para atender esse objetivo.  

Lawrence reconheceu que a relação tropa/espaço determinaria o caráter último da guerra: Em termos práticos, significava (por exemplo) que sendo nossa mobilidade cinco vezes maior do que a dos turcos, estariamos igualados a eles com uma quinta parte do seu contingente. As operações deveriam ser altamente móveis, ubíquas, independentes de bases e de comunicações, alheias à situação do terreno, áreas estratégicas e direções determinadas, como na guerra naval.“Aquele que domina o mar possui uma grande liberdade e pode fazer o que bem quiser numa guerra”. E nós dominavamos o deserto.
                
 Considerava o camelo um navio do deserto. Proporcionava à guerrilha uma incrivel autonomia e mobilidade operacional. As tropas eram capazes de transportar víveres para seis semanas e, mesmo a temperaturas muito elevadas, os camelos podiam avançar até três dias sem água.

Assinalou que os irregulares árabes dispunham de uma autonomia operativa suficiente para percorrer a incrível velocidade toda a península árabe e além. Lawrence mesmo cobriu 2400 km durante um mês cavalgando sem descanso. O guerrilheiro árabe montado em seu camelo era ele próprio uma força independente. Registrou que (…) o árabe era simples e individualista.  Cada homem serve na linha de frente e é autosuficiente. Não tinhamos linhas de comunicação nem tropas de apoio. A eficiência de cada um residia na sua própria conduta em combate. Pensamos que nas condições em que combatemos a soma da força fornecida pelos combatentes individualmente será ao menos igual ao produto de um sistema.
                
Como resultado de suas observações, Lawrence extraiu seis princípios fundamentais da insurreição que ainda conservam marcante atualidade:

Primeiro, um movimento de guerrilha vitorioso exige uma base inexpugnável – não somente contra ataques físicos, mas igualmente contra outras formas de ataque como ataques psicológicos.
Segundo, a guerrilha precisa enfrentar um inimigo tecnologicamente sofisticado. Tanto mais sofisticado, mais vulneráveis serão as estruturas de comunicação e logística.
Terceiro, o inimigo deve ter um contingente insuficiente, incapaz de ocupar o território em profundidade com um sistema de fortificações interligadas.
Quarto, a insurreição necessita, no mínimo, o apoio passivo da população, senão seu envolvimento total. De acordo com os cálculos de Lawrence, as rebeliões podem ser deflagradas por 2% de ativistas e 98% de simpatizantes passivos.
Quinto, a força irregular precisa ter qualidades fundamentais tais como velocidade, persistência, presença e independência logística.
Sexto, os irregulares devem dispor de armamento suficientemente avançado para explorar as vunerabilidades do inimigo no campo da logística e das comunicações.

              

Há outro aspecto da guerrilha que merece consideração: a função do lider da insurreição e seu talento para chefiar. Definitivamente, o sucesso de Lawrence no deserto da Arabia repousa nas suas grandes qualidades pessoais e na capacidade de liderar. Breve exame do seu estilo de comandar nos oferece um quadro das qualidades de certo modo raras e únicas necessárias ao chefe de uma inssurreição. Lawrence combinava a sagacidade, a integridade, o humanismo, a coragem e a disciplina com a empatia – a aptidão de identificar e estabelecer um liame emocional com os subordinados.
 

T.E Lawrence morreu em um acidente de motocicleta


Numa insurreição, a empatia é regra especialmente crucial: ela incorpora o líder no coração e no espírito dos seus homens, tornando-o capaz de estabelecer intuitivamente o limite físico e psicológico da sua tropa; na guerrilha, o insurgente opera no limite da atividade humana – e além dele, amiúde – para manter uma vantagem moral sobre o inimigo convencional mais poderoso.

A mesma empatia funciona em relação ao seu superior. Ademais, chefes insurgentes como Lawrence são vitoriosos por que são instigadores, dão aos seus homens a motivação, o treinamento e a habilidade necessários para cumprir missões que eles mesmos possam desempenhar. Os instigadores agem amplamente como catalisadores de uma reação química, como fator que induz ou precipita uma alteração da ação.
               
Thomas Edward Lawrence morreu em 19 de maio de 1935, vítima de um acidente de motocicleta, próximo ao retiro que se impôs em Dorset, Inglaterra. Tinha somente 46 anos. Malgrado a vida relativamente curta, sua influência foi enorme; seus escritos e suas ligações pessoais ensejaram fortes amizades com as mais influentes personalidades da época como Sir Winston Churchil.

Um dos laços intelectuais mais fortes foi amarrado com B.H Liddell Hart, importante teórico e historiador militar do século XX. Evidencia-se ao longo da importante obra de Liddell Hart – STRATEGY (As Grandes Guerras da História. São Paulo: Ibrasa, 1967):  a longa correspondência entre os dois mostra claramente a contribuição de Lawrence; de sua parte Liddell Hart não hesita em exprimir sua gratidão. Não é por outro motivo que a biografia de T.E. Lawrence escrita por ele é, talvez, no gênero, a melhor das suas destacadas obras (Lawrence Of Arabia. New York: Da Capo, 1989).
               
Por último, há que reconhecer a genialidade de Lawrence e, ainda que tarde, o cumprimento integral da missão de que foi encarregado e dela se imbuiu de corpo e alma, muito além do dever. Constatou que os homens não nascem talentosos mas se tornam tal pelo estudo intensivo e pela aplicação prática.  Lawrence e outros do mesmo calibre lutaram tenazmente contra suas fraquezas e imperfeições pessoais para liberar essa genialidade.

Ele mesmo entendeu isso quando, a propósito da sua biografia em elaboração, escreveu para Liddell Hart: (…) Deve ficar bem claro, pelo menos no meu caso, que o generalato não me veio por instinto, sem sentir, mas pelo entendimento, duro estudo e concentração mental. Se viesse a mim facilmente, não o teria praticado tão bem. Para elaborar minha estratégia (ou insurgência), eu não encontrei professores no teatro de operações: apoiando-me, havia muito tempo de leitura (e escritos) de história militar … Com dois mil anos de exemplos do passado nas costas, ao iniciar a luta não havia desculpa para não lutar bem.
               
Sem intenção de fazê-lo, Lawrence não poderia ter escrito melhor epitáfio.
 
Fontes de Consulta: 

LAWRENCE, T.E. The Seven Pilars of Wisdom. London: Wordsworth Editions, 1999
_______________ The Evolution of a Revolt, Army Quarterly and Defence Journal, October 1920 Disponível em http://www.au.af.mil/au/awc/awcgate.htm  Acesso em 02/2015.
SCHNEIDER, James J. T.E. Lawrence And the Mind of An Insurgent, Army Magazine, July 2005 Disponível em http://www.ausa.org/Pages/default.aspx  Acesso em 02/2015.

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