Série de três artigos publicado em O Globo de 12 Julho 2015 TORTURA – Nos quartéis, sessões de choques e espancamentos deixam marcas indeléveis Link TORTURA – Mal que persiste até os dias de hoje Link TORTURA – O Estado torturador e a falta de provas Link TORTURA – Comentário DefesaNet a ser publicado |
Antônio Werneck,
Barbara Marcolini e Vera Araújo
RIO – Numa casa pequena num bairro da Zona Oeste do Rio, o soldado do Exército mostra uma cicatriz pequena perto do pulso esquerdo e outra na cabeça, que deixa uma falha mínima no cabelo. São marcas visíveis. As invisíveis, ele vai revelando aos poucos, com dificuldade, com a ajuda do pai, que está ao seu lado na sala minúscula.
Tem crises nervosas, passou a sangrar pelo nariz, desenvolveu cálculo renal e descobriu uma malformação no cérebro (a síndrome de Dandy Walker), que nunca tinha se manifestado. Sono tranquilo, nunca mais: os pesadelos não deixam. Acorda gritando, pedindo socorro. Até hábitos simples, como sair à noite para tomar um sorvete na esquina, viraram um suplício. Ele tem medo.
As sequelas, segundo o soldado, são testemunhas de uma violência sofrida dentro de uma unidade militar no Rio. O caso, que lembra o período mais sombrio da ditadura militar, aconteceu no Centro de Operações do Exército, em Deodoro.
Não é o único: um levantamento do GLOBO nos processos da Justiça Militar do Rio revela que, de 2005 a junho deste ano, 299 casos foram julgados. São relatos graves de maus-tratos e lesão corporal nos quartéis do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Todos praticados por instrutores durante treinamentos.
O soldado morador da Zona Oeste e mais 16 colegas de farda, todos recrutas, foram submetidos a espancamentos por três meses. Passaram por sessões diárias de choques, muitas vezes aplicados quando os militares estavam com o corpo molhado.
Algumas vezes, de calças arriadas, recebiam descargas elétricas nos testículos e nas nádegas. Em outras, forçados a abrir a boca, recebiam choques na língua, além do pescoço, das costas e das orelhas. Às quintas-feiras, que os superiores apelidaram de “Dia sem fim”, as torturas duravam o dia inteiro.
Parte da violência foi registrada num vídeo de pouco mais de quatro minutos gravado pelos torturadores: um tenente, dois sargentos e um cabo. Eles deveriam ministrar um curso básico, preparando o recruta recém-alistado para os primeiros passos na carreira militar. Nas imagens, obtidas pelo GLOBO, parecem se divertir com o sofrimento alheio.
Enquanto aplicam choques usando um pequeno aparelho, gargalham. Um deles encosta a geringonça no pescoço dos recrutas e pede que repitam uma frase qualquer, tarefa que parece impossível para as vítimas
— Apanhei muito. Eles pareciam estar doidões. Hoje tenho muita vergonha. Eu só aprendi violência, só recebi pancada. Não aprendi mais nada — desabafa o militar, que está afastado do quartel para se tratar. — Estávamos ali para aprender a manusear armas, adquirir conhecimentos básicos. Virou um inferno.
O soldado move atualmente uma ação cível na 8ª Vara Federal do Rio. Espera uma sentença em breve. Pede reparação financeira à União, tratamento médico do Exército e baixa remunerada da corporação. Na esfera criminal, o caso foi desclassificado na Justiça Militar da União, que julga os crimes cometidos nas Forças Armadas.
No lugar de uma acusação por tortura, que levaria o processo para a Justiça Federal, os instrutores responderam por violência contra inferior e ofensa aviltante, dois artigos do Código Penal Militar que resultaram em penas brandas (três deles receberam nove meses de detenção e o quarto foi condenado a um ano e seis meses).
Os promotores da Procuradoria da Justiça Militar do Rio bem que tentam enquadrar casos semelhantes como tortura. No ano passado, o promotor Aílton José da Silva, entendendo que havia elementos para denunciar pelo delito um tenente e quatro cabos, instrutores do 20º Batalhão Logístico Paraquedista, em Deodoro, pediu o envio do processo à Justiça Federal, que julga esse crime nas Forças Armadas. Quatro soldados tinham sido espancados barbaramente.
“Além das agressões, humilhações, desrespeito e apologia à rotina de torturas, os autos também comprovam a existência de uma prática absurda, digna dos tempos dos grilhões da escravidão”, escreveu Aílton nas suas alegações. Sua tese foi recusada. “Há gravidade nas condutas apuradas na fase de inquérito, porém não há, no caso, o crime de tortura.
Pode-se falar, em uma análise primária, no cometimento, em tese, dos delitos de violência contra inferior, lesões corporais”, respondeu o juiz Carlos Henrique Silva Reiniger Ferreira na sentença.
O promotor recorreu ao Superior Tribunal Militar, onde os ministros também recusaram a denúncia. O caso será julgado agora como maus-tratos, crime punido com pena de dois meses a um ano de detenção. Hoje, na Justiça Federal do Rio, só há dois processos por tortura, que tramitam há mais de uma década.
— Eu não sei dizer por que acontece tanta violência nos treinamentos nos quartéis. Mas é algo recorrente em vários processos — afirma Aílton.
TENENTE SOFREU PARADA CARDÍACA
A impunidade também atormenta um tenente de 26 anos, filho de um general, barbaramente agredido durante um curso no Centro de Instrução de Operações Especiais do Exército, também em Deodoro. Levado às pressas para o hospital, sofreu parada cardíaca, foi ressuscitado e ficou com uma ferida profunda nas costas, provocada pela violência dos golpes. Sete militares foram denunciados: três majores, três capitães e um sargento.
No julgamento, no ano passado, o caso não foi enquadrado como tortura, mas como maus-tratos. Todos foram absolvidos. A família do tenente recorreu ao STF, mas a corte trancou a ação penal. Ninguém foi punido.
Em nota, o Exército informa que a profissão militar exige “elevados níveis de adestramento” e “um intenso treinamento”. A corporação frisa, porém, que essas instruções são “rigidamente controladas”, inclusive para evitar riscos à integridade física dos militares.
Ainda segundo a nota, “maus-tratos, violência contra inferior ou lesão corporal não fazem parte do treinamento militar” e, se acontecerem, serão fatos isolados. O Exército diz que “repudia de forma veemente” casos como esses e, se ocorrerem, “tomará todas as providências necessárias” para investigá-los e punir rigorosamente os responsáveis.
PRÁTICA ERA COMUM NOS TEMPOS DA DITADURA
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, concluído no ano passado, revelou que 377 pessoas foram responsáveis diretas ou indiretas pela prática de torturas e assassinatos durante a ditadura militar. O documento foi o resultado de dois anos e sete meses de audiências públicas, coleta de documentos e depoimentos de militares e civis. De acordo com a comissão, 224 pessoas foram assassinadas durante a ditadura. Além disso, 210 são consideradas desaparecidas.
A tortura foi usada sistematicamente contra adversários do regime que eram presos. Mas não foi a única violência perpetrada pela ditadura. Logo após os militares terem assumido o poder, em 1964, foi editado o Ato Institucional número 1 (AI-1), que permitia ao governo modificar a Constituição, anular mandatos legislativos, interromper direitos políticos por dez anos e demitir ou aposentar qualquer opositor do regime. O ato também determinou o fim das eleições diretas.
PALAVRA DE ESPECIALISTA
“A ONU entende por tortura ações praticadas por agentes do Estado: policiais, militares das Forças Armadas e agentes penitenciários. Outros casos são considerados maus-tratos. A tortura foi implantada no Brasil com a chegada de Pedro Álvares Cabral. A Corte portuguesa trouxe os escravos, que também foram torturados.
Dali para frente, essa cultura persistiu e ficou mais clara nos anos de chumbo. Em plena democracia, ainda encontramos nas delegacias, em presídios e em locais de privação de liberdade a mesma situação. A certeza da impunidade leva muitos agentes a continuarem com essa prática. Hoje ela acontece, sim, às escondidas. Uma pessoa privada da liberdade tem medo de apanhar.
Mas, o agente do Estado que inflige os maus-tratos também precisa ter medo de ser punido pela lei. Quando o espancamento acontece numa comunidade, as testemunhas têm medo. O revanchismo existe. Como podemos proteger a testemunha? Pode-se tirá-la do local de trabalho, levá-la para lugar ignorado e até mudar sua identidade.
Mas, até que isso aconteça, os algozes poderão encontrá-la e lhe fazer uma ‘visita’. É uma situação macabra.” Margarida Pressburger, integrante do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU e da Subsecretaria de Estado de Política para as Mulheres.