Publicado OESP Quarta, 24 Setembro 2014
Denis Lerer Rosenfield
Professor de Filosofia na UFRGS
Algumas situações são escandalosas, porém, à força da repetição, parecem não mais nos incomodar. O anormal se torna normal e os juízos moral e político tendem a desaparecer. É como se tivéssemos nos tornado incapazes de julgar.
A Comissão da Verdade, que deveria ser mais propriamente denominada da Inverdade, é um desses casos, pois termina atingindo o próprio bom senso. Se a recuperação e o descobrimento de fatos constituem o cerne da pesquisa histórica, esta deve basear-se na imparcialidade.
Uma reportagem publicada no O Estado de S. Paulo, do dia 21 de setembro, é, neste sentido, particularmente ilustrativa. Nela, é relatada a morte de Rosalindo de Souza, militante do PCdoB que morreu na guerrilha do Araguaia. As condições de sua morte eram, até então, desconhecidas, havendo vários relatos –seja dos militares (justiçamento), seja do PCdo B (acidente com a própria arma, embora o comandante da guerrilha, Maurício Grabois, também falasse de suicídio), seja dos moradores da região (suicídio), seja de morte provocada pelos militares (ativistas dos direitos humanos).
Nenhum dos relatos corresponde à verdade, expondo uma guerra de versões que deveria ser investigada. Em todo caso, todos os lados deveriam ser objeto de uma séria pesquisa histórica. No entanto, não é isso que faz a Comissão da Verdade, que geralmente se contenta com as versões de um lado, o dos perdedores, que querem assim conquistar uma vitória ideológica.
Tal situação, por si só, já deveria ser uma advertência para todos os que se preocupam genuinamente com a verdade e não pretendem apenas impor uma visão ideológica e distorcida dos fatos. Há um pressuposto aqui implicitamente admitido. Tudo o que procede da "esquerda" deve ser "verdadeiro", enquanto o que a contraria seria, por definição, "falso".
É necessário fazer história e não contar uma outra história. Os fatos, tais como são, estão sendo agora desvendados pelo jornalismo investigativo do Estadão. Um ano antes da morte do guerrilheiro Rosalindo, este assassinou em uma emboscada o camponês João Pereira, de 21 anos. Estava esse camponês na companhia de um amigo, passando por uma roça para caçar uma espécie de macaco.
O assassinato foi a sangue frio. O pai do camponês assassinado saiu no encalço do guerrilheiro/assassino e não o encontrou, tendo, depois, abandonado a perseguição. Olímpio Pereira, que depois viria a matar o "guerrilheiro", era compadre do camponês morto. Há um forte componente de vingança envolvido neste episódio, que não se deixa reduzir aos fatores ideológicos. O episódio está muito mais para uma história de vingança do que para a "luta de classes".
Contudo, o viés partidário continua a obscurecer a visão. Acrescente-se ainda, segundo a reportagem, que naquela época o Exército não lavrava "combates nem dava ordens a mateiros para caçar guerrilheiros. Era um momento de trégua e de trabalhos de inteligência".
Uma pesquisa histórica, se a Comissão da Verdade estivesse comprometida com a Verdade, deveria fazer um levantamento de todos esses dados e não se interessar somente pela morte de um guerrilheiro que, de fato, tinha cometido um assassinato. As tinturas do maoísmo só escondem o que deveria ser desvelado.
Aliás, algo próprio dos regimes totalitários. O que, contudo, é inadmissível consiste em se estar reproduzindo o mesmo esquema ideológico em nosso país. Procuraram o "assassinato" cometido por militares e se deparam, agora, com uma vingança.
Já não era hora da dúvida assaltar essa Comissão, dúvida esta que Descartes considerava como o início mesmo da verdade? A família do camponês ficou destruída. No dizer de sua mãe: a morte do filho "acabou" com a família. Por que a Comissão da Verdade não se preocupa com a família deste camponês morto, procedendo, por exemplo, a uma indenização? Por que não uma reparação em nome da Verdade? Seria uma medida com um mínimo de moralidade e justiça. Mas parece que ela só gosta de intelectual comunista e não de pobre.
Curioso também é o vocabulário utilizado pela reportagem. O hoje agricultor aposentado que matou Rosalindo é qualificado como "matador", enquanto este é caracterizado como “guerrilheiro”. Este cometeu um assassinato e como tal deveria ser nomeado. Por que a preocupação, de nítido caráter ideológico, de encobrir o seu ato como se fosse justificado por uma "causa", uma causa que, aliás, na China assassinou mais de 70 milhões de pessoas? Por que o camponês que age por vingança é chamado de "matador"? Fica bem para o politicamente correto vigente?
Outro fato que chama atenção na reportagem reside na parceria que se estabeleceu entre o Exército e os camponeses da região, como se isso fosse uma espécie de crime antecipado, objeto de reprovação. O Exército estava cumprindo uma missão de erradicar – com sucesso – uma tentativa radical de implantar em nosso país o comunismo maoísta. Os "guerrilheiros" não eram "combatentes da liberdade", mas agentesdo comunismo chinês e por ele treinados. Apagar este fato central corresponde a um grande desserviço para a Verdade. Os historiadores do futuro tirarão pouco proveito desta Comissão por sua aversão mesma à Verdade que diz representar.
Neste aspecto, ressalte-se aqui que os camponeses da região, pressionados ou não, agiram de acordo com a lei vigente neste país, colaborando com os agentes do Estado. O Exército lá representava o Estado, enquanto os ditos guerrilheiros lá estavam para destruí- lo e colocar em seu lugar um Estado-partido comunista. É como se colaborar com os militares, isto é, o Estado, fosse falta grave, enquanto aliar-se ao comunismo maoísta uma demonstração de virtude.
Literalmente, o mundo está invertido e é essa inversão que comanda os trabalhos da Comissão da Verdade. Como pode uma cabeça invertida dar conta dos fatos históricos?