Fusão com Embraer teria influenciado decisão de ministro sobre privatizações

Manoel Ventura / Geralda Doca / Danielle Nogueira
O Estado de São Paulo

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski de conceder liminar proibindo o governo de vender estatais sem o aval do Congresso teria como pano de fundo a venda da fabricante de aviões Embraer à americana Boeing, disseram assessores próximos ao magistrado.

Forte defensor da soberania nacional e contra a venda da Embraer, uma empresa privada, por considerá-la estratégica para a defesa, Lewandowski vê com maus olhos a parceria com a Boeing, segundo fontes próximas ao ministro. Procurada, a assessoria de Lewandowski informou apenas que a operação no setor aéreo “não foi o objeto do processo analisado pelo ministro”.

A necessidade de aval prévio do Congresso para a privatização de qualquer estatal dificulta os planos do governo. Até agora, por lei, apenas as eventuais privatizações de Petrobras, Eletrobras, Caixa e Banco do Brasil precisavam obter concordância do Parlamento. Com a decisão do ministro do STF, todas as privatizações (inclusive de subsidiárias e controladas) precisam passar pela análise de deputados e senadores.

Para duas fontes ligadas a Lewandowski, o ministro já iria dar uma interpretação restritiva às privatizações ao analisar a Lei das Estatais — alvo do processo em que a liminar foi concedida. Por isso, assessores do ministro avaliam que, se ele tiver de decidir sobre a venda da Embraer aos americanos, vai se posicionar de maneira contrária a ela. Eles leram sua decisão de conceder a liminar como uma reação à aquisição da fabricante de aviões brasileira pela Boeing.

Poder de veto na EMBRAER

Mesmo sendo uma empresa privada (a desestatização foi na década de 1990), o governo brasileiro tem poder de veto sobre decisões estratégicas da Embraer, inclusive a venda de controle acionário, por deter uma ação de classe especial, a golden share.

Nos últimos dois meses, o Sindicato dos Metalúrgicos da cidade e região, ligado à Conlutas, estima que 300 funcionários da unidade da Embraer em São José dos Campos (SP) tenham sido demitidos. Para o diretor do sindicato, Hebert Claros, o corte seria uma sinalização de que um acordo com a Boeing está próximo. Nesta quinta-feira, a ação da Embraer com direito a voto subiu 3,53% na B3 (ex-Bovespa), para R$ 24,64, com a aposta de que um anúncio estaria para ocorrer em alguns dias.

Segundo o sindicato, há relatos dos funcionários de que a Boeing consideraria o quadro de funcionários inchado. As demissões teriam por objetivo preparar a companhia para a venda. Claros afirma que o sindicato mantém sua posição contrária ao acordo, mas disse que a estratégia para travar o negócio não está definida:

— Não vamos aceitar o acordo. Mas não temos detalhes de como ele será. Podemos entrar na Justiça para tentar barrá-lo ou fazer uma greve — observou Claros.

Enquanto isso, o governo prepara o recurso que será apresentado ao Supremo na tentativa de reverter a decisão de Lewandowski. O caso será analisado pelo plenário da Corte, mas a data ainda não foi marcada. A Advocacia-Geral da União (AGU) deve alegar, entre outros pontos, que a lei que instituiu o Programa Nacional de Desestatização (PND) já assegura o amparo legal às privatizações. Por essa legislação, basta um decreto presidencial para autorizar a venda.

Na interpretação do departamento jurídico do BNDES — responsável legal pelos estudos de concessão e privatização no país —, a decisão do ministro afeta apenas projetos de privatização, não atingindo as concessões, como de rodovias, ferrovias, aeroportos e da Lotex (a raspadinha da Caixa).

Força de vendas da Boeing é crucial para a Embraer, diz fundador da brasileira¹

Fundador da Embraer e um dos principais responsáveis pelo projeto de privatização da fabricante de aviões, em 1994, Ozires Silva vê no negócio entre a brasileira e a americana Boeing uma oportunidade para ampliar a força de vendas da Embraer. “A força de vendas da Boeing é muito importante para nós”, diz ele, que levanta ainda a possibilidade de as aeronaves da Embraer serem “americanizadas”. “Isso significa que elas poderiam ser vendidas nos Estados Unidos, o maior mercado do mundo, como aviões nacionais”, acrescenta.

A negociação entre as duas companhias foi anunciada no fim do ano passado e pode resultar na criação de uma terceira empresa, na qual a Boeing teria 80% de participação e a Embraer, 20%. A nova companhia deve envolver apenas o braço de aviação comercial da brasileira. O segmento militar ficará de fora do acordo por determinação do governo brasileiro, que detém uma ação especial (“golden share”) da Embraer que lhe dá direito a veto em negociações como a que está em curso.

“Isso (a manutenção da área militar) é assim no mundo todo. Nos EUA mesmo, o governo proíbe que a Boeing venda aviões militares sem sua autorização. O governo brasileiro seguiu o mesmo procedimento e está certo”, avalia Silva. “Imagina a Boeing vendendo para governos inimigos dos EUA.”

Para o ex-presidente da Embraer, uma desvantagem do acordo entre as fabricantes é a possibilidade de a americana se “desinteressar” pela brasileira. “Os vendedores da Boeing podem pretender vender mais aviões Boeing que Embraer. Pode acontecer. Não tem como mexer nisso.”

Silva, porém, acredita que o cenário é favorável para o acordo, já que a europeia Airbus se associou, em outubro do ano passado, à canadense Bombardier em um programa de desenvolvimento e vendas de aviões com até 150 lugares. A Bombardier concorre diretamente com a Embraer, que também tem foco em aeronaves desse porte. Com a parceria entre as duas, tanto Boeing como Embraer acabaram perdendo força para competir no mercado global.

Interesse. Além dessa necessidade de fazer frente à parceria entre Bombardier e Airbus, a Boeing procura, na compra de parte da Embraer, se desenvolver rapidamente em um dos mercados mais promissores do setor e no qual ainda não atua, o da aviação regional – que depende de aviões de médio porte. Silva conta que, quando apresentou ao governo brasileiro a proposta de criação da Embraer, na década de 60, já acreditava que esse mercado tinha grande potencial, pois poderia conectar o interior com as capitais.

“Hoje, você olha o mercado mundial, estão realmente pensando em aviões da categoria dos da Embraer. Foi nesse momento que a Boeing, vendo o que aconteceu com Airbus e Bombardier, pensou aonde poderia ir. Eles disseram: ‘vamos construir tudo (aeronaves de médio porte) a partir do zero? Não, vamos conversar com a Embraer’.”

Na avaliação de Silva, para a aviação regional avançar no Brasil, é necessário acabar com o monopólio da Infraero. Isso, segundo ele, faria com que os aeroportos tivessem de ser mais competitivos, o que baratearia custos para empresas aéreas e passageiros.

Ainda de acordo com ele, uma maior abertura do Brasil em geral para o comércio internacional também daria mais competitividade para as empresas brasileiras e permitira que surgissem novos casos de sucesso como o da Embraer. “A Embraer venceu no mercado internacional porque entrou numa competição e ganhou essa competição. O mercado acomoda as pessoas se elas estão protegidas por um dispositivo legal qualquer.”

Silva se diz surpreso com a intenção da Boeing de comprar a Embraer – a americana “sempre foi referência aqui” – e destaca que o espírito de empreendedor funciona em um momento de negociação como o atual. “Uma característica essencial do empreendedor é coragem e ousadia. A gente não sabe quais são os riscos, mas o empreendedor trabalha para que esses riscos sejam minimizados.”

 

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