Claudio Dantas Sequeira e Octávio Costa
A chegada do ex-chanceler Celso Amorim ao Ministério da Defesa no ano passado provocou na caserna um estranhamento óbvio. Durante o regime militar, o diplomata foi demitido sumariamente da direção da Embrafilme ao liberar a película “Pra Frente Brasil”, que retratava os anos de repressão política. O clima de enfrentamento com pequenos grupos da reserva se acirrou com a criação da Comissão da Verdade e culminou com a divulgação, há um mês, do manifesto “Alerta à Nação – Eles que venham, aqui não passarão”, com críticas diretas ao ministro e à presidenta Dilma Rousseff. Amorim ameaçou punir os militares que assinaram o manifesto, mas acabou recuando.
Preferiu determinar aos comandantes das três Forças que enviassem às fileiras uma mensagem firme de pacificação. “O mais importante é fazer com que eles vejam o inconveniente de certas posições, a que isso leva e relembrar certos deveres. O ministro civil não está aqui para politizar as Forças Armadas, mas para garantir sua missão constitucional, seu caráter profissional”, afirmou Celso Amorim em entrevista exclusiva à ISTOÉ. Sobre a Comissão da Verdade, ele garante que não há razões para temer o revanchismo, mas espera que o aniversário de 48 anos do golpe de 1964 não seja celebrado no sábado 31. “A comissão é o epílogo da transição democrática. É uma necessidade da sociedade em reconciliar-se com seu passado”, afirmou.
Istoé – Ter um civil à frente das Forças Armadas já é algo pacífico ou ainda há resistência em alguns setores da caserna?
CELSO AMORIM -Francamente, eu convivo todos os dias com militares, comandantes, o chefe do Estado-Maior e tantos outros. Nunca tive problemas desse tipo. O entrosamento, aliás, é ótimo. Há uma clara percepção, por parte deles, de que o fato de se ter um ministro da Defesa civil ajuda para certos pleitos, como reajustes e reequipamento. Além disso, eles percebem que há uma consciência sobre o trabalho profissional das Forças, que também deve ser respeitado e valorizado. O civil não está aqui para politizar as Forças Armadas. Ao contrário, para assegurar a missão constitucional e o caráter profissional dos militares, como a defesa da pátria e a garantia da lei e da ordem.
Istoé – Mas houve reação entre militares da reserva e até um manifesto polêmico contra o governo.
CELSO AMORIM – É preciso ter claro que esse tipo de iniciativa parte de oficiais da reserva. Se eu fosse contar os manifestos ou manifestações dos embaixadores da reserva quando eu era ministro das Relações Exteriores, simplesmente não dormia mais.
Istoé – A grande preocupação deles é com a Comissão da Verdade, pois muitos desses oficiais participaram da repressão. Há motivos para temer um revanchismo?
CELSO AMORIM – O que vou dizer agora é uma avaliação minha, pessoal. Acho que a Comissão da Verdade é o último capítulo da transição democrática, um epílogo. Há muito tempo estão sendo escritas outras coisas novas da fase democrática, mas ficou essa questão. É uma necessidade da sociedade em reconciliar-se consigo própria conhecendo a verdade. Como dizia o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz: “A verdade cura. Às vezes ela arde, mas cura.”
Istoé – Então, não há razão para os militares temerem o trabalho da comissão?
CELSO AMORIM – Olha, quem não quiser conhecer a verdade ou permitir que a verdade seja divulgada e documentada pode até temer. Posso dizer que o governo não vai tomar nenhuma iniciativa revanchista. Certamente, não teria nenhum cabimento e a lei não permite que se faça isso. É algo que foi pactuado. Sei que o (deputado) Jair Bolsonaro não votou, mas os demais deputados aprovaram a comissão. Aliás, foi uma das poucas leis aprovadas pelo Congresso com tanto consenso. Não vejo nenhuma razão para temer uma judicialização. A própria lei que estabelece a comissão reitera a Lei da Anistia.
Istoé – Há preocupação também em relação a documentos que ainda existiriam em poder das Forças Armadas, como os da Guerrilha do Araguaia. Esses documentos existem?
CELSO AMORIM – Não me consta que existam. Depois que eu cheguei, pedi informações e me disseram que os documentos foram destruídos. Por outro lado, temos uma comissão importante que cuida do Araguaia, que tem ido lá e já identificou dois corpos. E há grandes chances de identificarmos um terceiro. Esse trabalho é contínuo e vem alcançando sucesso.
Istoé – Quando o manifesto contra a Comissão da Verdade foi divulgado, o governo reagiu ameaçando retaliar. Haverá ou não punição?
CELSO AMORIM – Não vou me prender a palavras. Deixei esse assunto a cargo dos comandantes e eles têm levado a mensagem de maneira adequada a quem interessa, fazendo esses militares da reserva enxergar certas coisas. O mais importante é fazer com que eles vejam o inconveniente de certas posições, a que isso leva e relembrar certos deveres. Podem chamar de advertência regimental, mas não vou entrar nessa discussão.
Istoé – Só para esclarecer melhor, haverá algum processo administrativo?
CELSO AMORIM – Não. Seria complicado, então encontramos um método mais prático e eficaz.
Istoé – O sr. acha que essa insatisfação dentro da caserna é também alimentada pelas frequentes demandas salariais?
CELSO AMORIM – São duas coisas diferentes. A questão dos vencimentos dos militares é importantíssima. O profissionalismo dos militares deve ser respeitado. Eles são, em sua esmagadora maioria, bons profissionais, conscientes de qual é o seu papel. Não vou dizer quando ou de quanto será o reajuste, mas estamos trabalhando nisso. Não só no salário, mas na melhoria das condições de trabalho, equipamentos adequados e uma vida digna.
Istoé – Um reajuste a curto ou médio prazo é compatível com o orçamento contingenciado?
CELSO AMORIM – Quando se fala em orçamento, sabemos, obviamente, que não é satisfatório. Se compararmos, por exemplo, o orçamento da Defesa com nossas necessidades, com as necessidades de um país dos BRICs, que é a sexta economia do mundo, não é compatível. Temos que levar em conta muitos aspectos, como a dimensão do País, a vastidão do litoral e das fronteiras terrestres, os recursos naturais. Mas, se compararmos o orçamento deste ano com o do ano passado, está razoável.
Istoé – Então os projetos de investimento e modernização das Forças serão mantidos?
CELSO AMORIM – Sim. A compra dos helicópteros não foi afetada, nem o projeto do submarino nuclear ou o programa dos blindados.
Istoé – Mas e o F-X2? A compra dos caças virou uma novela que já dura mais de uma década
…
CELSO AMORIM – Posso dizer que já estamos nos últimos capítulos. Tenho uma expectativa de que a compra dos aviões possa ser resolvida ainda neste semestre.
Istoé – E a troca de informações com a Índia sobre a compra que eles fizeram de 126 caças Rafale? Muita gente interpretou como mais um aval brasileiro ao avião francês.
CELSO AMORIM – Não tem sentido. Minha visita à Índia para firmarmos essa cooperação já estava marcada muito antes de eles definirem a compra. Coincidiu de optarem pelo Rafale na semana em que fui lá.
Istoé – Os outros dois concorrentes não podem reclamar de um tratamento privilegiado?
CELSO AMORIM – Não há essa possibilidade. Eu já recebi aqui delegações da Suécia em que estava presente o presidente da Saab. Está prevista uma visita do secretário de Defesa dos EUA, mas não sei se ele vai tocar no assunto. Nada disso influencia no meu julgamento.
Istoé – Nem a decisão dos EUA de cancelarem a compra dos Super Tucanos?
CELSO AMORIM – Foi algo decepcionante, sem dúvida, e me parece improvável que possam reverter o resultado. Mas não há relação, até porque estamos falando de uma compra de R$ 300 milhões e de outra de R$ 5 bilhões.
Istoé – A cooperação entre o Itamaraty e o Ministério da Defesa nem sempre funcionou satisfatoriamente. Sua vinda para cá tende a melhorar esse diálogo?
CELSO AMORIM – Sinceramente, nunca houve uma divergência muito grande. Pode ter havido algum detalhe em algum momento, mas participamos de muitas coisas juntos. Claro que minha vivência no Itamaraty talvez ajude.
Istoé – De que maneira?
CELSO AMORIM – A grande estratégia de Defesa do Brasil tem que incluir as Relações Exteriores. Creio que pode haver uma mudança de intensidade nesse sentido, especialmente na cooperação com a América do Sul. Este é um dos grandes eixos de trabalho para os próximos anos. Se para o mundo nossa política é mais de dissuasão, para a região é de cooperação.
Istoé – Falando nisso, ressurgiu agora o debate sobre a soberania das Malvinas. Como o Brasil está lidando com isso?
CELSO AMORIM – A demanda da Argentina é histórica, e o Brasil apoia, assim como todos os demais países da região. Mas nós procuramos levar isso com transparência e bom-senso. Afinal, nós também temos uma cooperação importante com o Reino Unido.
Istoé – Sobre a segurança de grandes eventos, o Brasil está preparado para receber a Copa e a Olimpíada?
CELSO AMORIM – Acho que sim. Nossas Forças Armadas têm demonstrado em várias ocasiões sua aptidão para isso. Haverá uma grande cooperação com o Ministério da Justiça. Eu já tive vários briefings, inclusive sobre a Rio +20, que me deixaram muito tranquilo. Com relação à Copa e à Olimpíada, as coisas estão caminhando normalmente.
Istoé – Houve casos recentes de ações terroristas na Noruega e na França. O sr. vê algum risco de um ataque no Brasil?
CELSO AMORIM – Não posso garantir que não haja riscos, mas estou muito confiante em que estaremos preparados. Vamos monitorar tudo, com o apoio dos sistemas de inteligência de vários órgãos.
Istoé – Neste sábado 31, completam-se 48 anos do golpe de 1964. O sr. teme que ocorram comemorações?
CELSO AMORIM – Estou muito confiante de que coisas desse tipo, sobretudo entre os militares da ativa, não ocorrerão. Mas entre os da reserva não sei. O que posso dizer é que, como ministro da Defesa, tenho humildade para afirmar que estou aprendendo a cada dia. Mas tem que ficar claro que os militares devem seguir a orientação do poder civil eleito.