A alteração da Lei de Licitações (8.666/93) de acordo com a realidade da indústria de defesa e com as necessidades das Forças Armadas, o estabelecimento de um orçamento militar previsível e a articulação das compras de material de defesa, é só o começo do desenvolvimento de um sistema de aquisição eficiente. No entanto, são medidas imprescindíveis sem as quais não avançaremos em questões fundamentais, como planejamento, gestão e controle dos programas militares.
No atual contexto de crise econômica e redução dos gastos em defesa no mundo, diversos países estão racionalizando e melhorando seus sistemas de compras na área militar. O constante aprimoramento dos processos de aquisição é essencial para garantir uma alocação eficiente dos recursos, alto desempenho dos programas e qualidade dos produtos e serviços.
No Brasil, desde a Estratégia Nacional de Defesa (END/2008), se menciona a formulação de uma política articulada de compras a ser implementada pela Secretaria de Produtos de Defesa (SEPROD), criada pela Lei nº 907/2010 que reestruturou o Ministério da Defesa (MD).
A SEPROD, ainda em fase de estruturação, deve estabelecer as bases para a formulação e atualização da política de compras de produtos de defesa, exercer o controle das importações e exportações relativas a estes itens, coordenar a fiscalização das empresas estratégicas e produtos de defesa, assim como a participação das Forças Armadas no processo de fabricação de produtos de defesa. Além disso, se compromete a propor os fundamentos para a formulação e atualização da política nacional de ciência, tecnologia e inovação de defesa, visando o desenvolvimento tecnológico e a criação de novos produtos de defesa.
A Secretaria vai coordenar a definição dos requisitos dos produtos de uso comum às Forças Armadas, o que envolve um grupo multidisciplinar de profissionais relacionados à área de tecnologia, ao gerenciamento de compras, à licitação, entre outros. Como exemplo de compra articulada, já tivemos a licitação, coordenada pelo MD e de responsabilidade da Aeronáutica, para a aquisição de 50 helicópteros de transporte EC- 725 (16 para cada Força e 2 para uso presidencial). Com a centralização das compras de material de defesa, espera-se a eliminação de gastos sobrepostos e a otimização das tecnologias sensíveis.
A alteração da Lei de Licitações (8.666/93) de acordo com a realidade da indústria de defesa e com as necessidades das Forças Armadas, o estabelecimento de um orçamento militar previsível e a articulação das compras de material de defesa, é só o começo do desenvolvimento de um sistema de aquisição eficiente. No entanto, são medidas imprescindíveis sem as quais não avançaremos em questões fundamentais, como planejamento, gestão e controle dos programas militares.
Apesar dos importantes avanços, o desenvolvimento de uma política de compras na área de Defesa engloba outros aspectos essenciais, como o aprimoramento do marco institucional e o estabelecimento de diretrizes e práticas em termos de gestão dos recursos e controle dos programas e projetos.
A aquisição de material militar no Brasil é feita obrigatoriamente por meio de licitações públicas, cujas normas estão consolidadas na Lei nº 8.666/93 e alterações posteriores1. Esta lei busca assegurar ao setor público a competição justa entre os licitantes, a imparcialidade no julgamento e a garantia da seleção das propostas mais vantajosas para os bens e serviços demandados pelos órgãos governamentais.
Contudo, no caso das aquisições de material de defesa, razões tributárias e orçamentárias dificultam muitas vezes a escolha da melhor proposta e impõem uma série de obstáculos ao desenvolvimento da indústria nacional.
A legislação brasileira permite que se obtenha material de Defesa no exterior sem praticamente nenhum imposto, enquanto os produtos nacionais são encarecidos em aproximadamente 40% com diversos impostos federais, estaduais e municipais2. Essa situação é agravada pelo fato de predominar o critério de menor preço nos processos de licitação, já que os tipos de licitação “melhor técnica” e “técnica e preço” são utilizados somente para serviços de natureza predominantemente intelectual (como elaboração de projetos e estudos técnicos) e, no último caso, para a aquisição de bens e serviços de informática.
Esses dois fatores combinados vão contra o art. 3º da Lei 8.666/93 (que prevê que os processos licitatórios sejam norteados pela isonomia e igualdade dos licitantes), dificultando o desenvolvimento de empresas fornecedoras nacionais e o adensamento da cadeia produtiva.
As políticas recentemente adotadas pelo governo para estimular a competitividade do setor industrial de defesa têm se baseado em medidas de salvaguarda para proteger a indústria nacional (fundamental para um setor que renasce após décadas de abandono). São exemplos: o estabelecimento em 2010 de uma sobretaxa de US$ 12 para cada par de coturnos importado,
afastando os chineses da área de calçados, e a regulamentação da Lei nº 12.349/2010 no contexto do lançamento do Plano Brasil Maior (2011-2014) em princípios de agosto(3).
Esta última alterou a Lei nº 8.666/93 e instituiu margem de preferência de até 25% nos processos de licitação para produtos manufaturados e serviços nacionais, entre eles os do setor de defesa, que atendam às normas técnicas brasileiras. A medida poderá evitar o gasto anual de R$ 100 milhões na compra de 400 mil uniformes camuflados de indústrias localizadas na China. Entretanto, ainda é modesta se considerarmos a valorização expressiva do real e a magnitude da assimetria tributária, produzindo resultados menos expressivos em outras áreas de grande importância estratégica, como os setores intensivos em tecnologia e conhecimento, nos quais a competição internacional não é menos acirrada.
Por outro lado, a Lei nº 12.349/2010 prevê que nas contratações destinadas à implantação, manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia de informação e comunicação, considerados estratégicos em ato do Poder Executivo federal, a licitação poderá ser restrita a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País (art. 3º, § 12). Quanto a isso, é importante destacar as oportunidades para a indústria de defesa, já que há espaço na lei para considerarmos, por exemplo, atividades de integração de sistemas, sistemas C2, C4ISR e de comando e controle remoto de VANTs para uso em segurança pública como sistemas estratégicos que teriam preferência em detrimento da contratação de produtos estrangeiros.
Apesar de tais medidas representarem um alívio para a indústria nacional, ainda estamos
distantes de implementar políticas mais efetivas, como de fato seria a desoneração da cadeia produtiva e a utilização do poder de compra do Estado para a obtenção de resultados em termos de desenvolvimento industrial. Como podemos verificar no próprio texto do Plano Brasil Maior: “O Brasil ainda está nos primórdios do processo de integração do poder de compras públicas à política de desenvolvimento produtivo e tecnológico, ainda que os aprimoramentos recentes da legislação tenham sido significativos”.
Atualmente, dois projetos de lei buscam alterar o art. 24 da Lei 8.666/93 que versa sobre as dispensas de licitação nas aquisições governamentais, e dar preferência à compra de
produto de defesa nacional. Deve-se destacar que essas medidas, se regulamentadas, não apenas incentivarão a capacitação da indústria nacional de defesa, como também proporcionarão maior autonomia e independência ao País, dado o caráter estratégico do setor.
Hoje, o primeiro projeto de lei, em vias de virar Medida Provisória, é fruto de um trabalho
conjunto entre o COMDEFESA (Departamento da Indústria de Defesa da FIESP) e o Ministério da Defesa. Este busca dar prioridade para aquisição e contratação junto à empresa brasileira de Produtos Estratégicos de Defesa, cujas compras se enquadrariam como hipótese de dispensa de licitação.
O outro se refere ao projeto de lei 4432/2008 que, se regulamentado, possibilitará a dispensa de licitação para a aquisição de bens e serviços necessários à Defesa Nacional, de média e baixa complexidade tecnológica, produzidos ou prestados no País por empresas públicas ou privadas.
O poder de compra do Estado e sua política de aquisição na área de Defesa são, muitas vezes, comprometidos devido ao contingenciamento orçamentário-financeiro que caracteriza a gestão do Brasil e da maior parte dos países latinoamericanos.
O problema principal não é o volume das compras, mas sim sua volatilidade e falta de
Previsibilidade (4).
No âmbito industrial, isso conduz sistematicamente à perda de capacitações, prejudica o avanço tecnológico e imputa uma série de riscos ao empresário. Além disso, como não há garantia de continuidade dos recursos, fica comprometida boa parte da possibilidade de se conduzir projetos de longo prazo, os quais sofrem sérias restrições, e o resultado pode ser a opção por propostas não condizentes com o almejado.
O predomínio do menor preço na seleção das propostas, diversas vezes, impede a escolha das empresas de maior capacidade técnica, mais qualificadas e preparadas, que oferecem soluções em defesa superiores em qualidade. O problema vem desde o processo de préqualificação das participantes em licitações públicas, o qual, mesmo com a previsão legal de diligências em qualquer fase do procedimento licitatório, permite a participação de empresas que não possuem recursos tecnológicos para desenvolver, implementar e manter determinado produto ou serviço.
Outros critérios de seleção deveriam ser considerados na Lei nº 8.666/93, como a análise da origem dos recursos e dos materiais utilizados para fornecimento, a fim de evitar a participação de empresas de fachada muitas vezes financiadas por estrangeiros e microempresas que atuam como representantes comerciais apenas fazendo a captação da licitação.
Portanto, uma medida essencial para a consolidação de um sistema de compras em defesa é o estabelecimento de orçamentos que, contrariamente ao que acontece hoje, garantam um grau de previsibilidade nos investimentos, permitindo o planejamento dos programas militares e oferecendo à indústria diretrizes suficientes para viabilizar seus planos de negócios. Neste sentido, a Lei de Programação Militar (Loi de Programmation Militaire) é um dos exemplos mais bem sucedidos da França já que, além de fixar o gasto militar francês para os próximos seis anos, também define metas, por exemplo, o número de funcionários ou o volume de equipamentos militares a serem entregues.
Uma das formas possíveis de avançar com relação à questão orçamentária estará em pauta no segundo semestre de 2011 no Congresso Nacional, quando se discutirá a repartição dos royalties do petróleo. A Frente Parlamentar da Defesa Nacional defenderá uma parte dos recursos para as Forças Armadas com o objetivo de atender aos encargos de defesa do território nacional, proporcionando uma fonte perene e crescente de recursos.
Além do estabelecimento de um marco institucional adequado e de um orçamento previsível, ainda é necessário considerar outros aspectos para estruturar um sistema de compras eficiente.
Em primeiro lugar, é fundamental o planejamento das aquisições de materiais de defesa e a comunicação das necessidades ao setor industrial. Neste sentido, o Defense Capability Plan australiano é outro bom exemplo. Atualizado e divulgado continuamente a cada dois anos, oferece uma perspectiva de planejamento das Forças Armadas para os dez anos seguintes. O documento descreve as aquisições que pretendem realizar, a capacidade da indústria local em suprir a demanda por soluções em defesa, os prazos estimados para aquisição, os custos, a complexidade técnica dos programas, o modelo de seleção de fornecedores, a dimensão e o cronograma dos projetos(5).
É importante, ainda, estabelecer diretrizes claras de gestão e controle dos programas militares com o desenvolvimento de sistemas que identifiquem problemas e atrasos nos projetos e avaliem continuamente seus resultados e riscos.
Por exemplo: em relatório intitulado The 2010 Army Acquisition Review, o Secretário do Exército norte-americano apontou falhas e problemas de eficiência nas aquisições militares, destacando que o processo de definição e especificação dos requisitos leva geralmente dois anos, não sendo este um período apropriado nem para projetos de longo prazo (6). O documento também destacou que, entre 1990 e 2010, 22 Programas de Aquisição em Defesa (Defense Acquisition Programs) foram cancelados antes de concluídos e que, desde 1996, o Exército gastou mais de US$ 1 bilhão por ano em programas que eventualmente foram interrompidos. São esses problemas de ineficiência que devemos ser capazes de identificar, quantificar, analisar e resolver.
Finalmente, deve-se contemplar o elemento humano, o qual se refere à condução dos processos de aquisição de material militar por profissionais qualificados e compromissados com o desenvolvimento da indústria nacional de defesa.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Defense Acquisition University é um centro especializado na formação de pessoal qualificado para a realização das compras especificamente na área militar (7). A maioria dos profissionais relacionados aos processos de aquisição em defesa passou pelos seus treinamentos ao longo da carreira, que envolvem cursos nas áreas de gestão de compras, auditoria, finanças, gestão de contratos, logística, entre outros.
Com a END e a recente estruturação do MD, temos a chance de repensar nosso sistema de defesa e aprimorar os processos de aquisição de material militar Para tanto, é fundamental estruturar um modelo de relacionamento entre a indústria nacional de defesa e seu único cliente, o governo. Somente com a inclusão da indústria no debate poderemos formular uma política de compras que seja sustentável no longo prazo.
1 – A Lei nº 8.666 foi alterada pela Lei nº 8.883/94; Lei nº 9.032/95; Lei nº 9.648/98; Lei nº 9.854/99; a Medida Provisória nº 2.182-18, de 23 de Agosto de 2001 que criou a modalidade de licitação pregão e a Lei nº 12.349/2010.
2 – A Lei 8.032/1990 concede isenção de imposto de importação a todas as aquisições dos três níveis governamentais, bem como do respectivo imposto sobre produtos industrializados. Por outro lado, a legislação protetora para material de defesa somente atinge o Imposto sobre produtos Industrializados (IPI) e, mesmo assim, unicamente na Nota Fiscal de entrega do produto final, sobre o qual se acumularão os demais impostos gravados sobre o preço final.
3 – O Plano Brasil Maior é uma continuidade da Política de Desenvolvimento Produtivo (2008) e tem como objetivo formular e operacionalizar uma política industrial coordenada que vença os desafios da indústria nacional principalmente em termos de competitividade e desenvolvimento tecnológico.
4 – Além disso, o procedimento licitatório limita a aquisição de materiais em um período máximo de um ano conforme a validade da Ata de Registro de Preços. A consequente falta de continuidade influencia diretamente na possibilidade de manutenção e melhoria de um produto ou serviço, dificultando ainda a redução de preço
5 – Disponível em: http://www.defence.gov.au/dmo/id/dcp/DCP_DEC10.pdf
6 – McHUGH, M. John. Army Strong: Equipped, Trained and Ready. Final Report of the 2010 Army Acquisition Review. Janeiro de 2010.
7 – Para maiores informações, acessar: http://www.dau.mil/aboutDAU/default.aspx
DEPARTAMENTO DA INDÚSTRIA DE DEFESA
COMDEFESA
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