A vida sem lei

HUDSON CORRÊA


Eu me sinto naqueles filmes de zumbi em que as pessoas de repente somem da cidade. Só que, em vez de mortos-vivos, eu temo encontrar bandidos." Na porta da casa da irmã, Fernando Antonio dos Santos se refere ao silêncio perturbador das ruas desertas na periferia de Vitória, a capital do Espírito Santo.

É manhã da quinta-feira, dia 9, e as poucas pessoas que andam por ali se olham com medo umas das outras. Nas cidades mais violentas do Brasil há sempre um risco em cada esquina. A diferença na Grande Vitória na semana passada é que todos os locais se tornaram esquinas imprevisíveis. O medo quase pode ser respirado. Fernando, que veio para uma visita, não pode voltar a Goiás porque não há transporte público. Kátia, sua irmã, estendeu um lençol branco com a palavra "Paz" na fachada do sobrado. É só um gesto de desespero. Em pé no alto da laje, ela observa as ruas de onde a qualquer momento pode surgir uma horda de bandidos armados, dispostos a matar e a saquear, "Nunca tive tanto medo. Parece que a gente está na Guerra da Síria", diz.

Desde o dia 3, uma greve ilegal da Polícia Militar converteu as cidades capixabas em cenários distópicos, daqueles onde o medo interditou a vida. Com quase todos os 10 mil policiais aquartelados nos batalhões, a população enclausurou-se e os criminosos sentiram-se livres para agir com violência.

Agências bancárias não funcionaram, o comércio baixou as portas, os hospitais pararam de atender e as escolas entraram em férias. Em apenas uma semana ocorreram 121 assassinatos, incontáveis roubos e ao menos 300 saques em lojas. A ausência do aparato de segurança pública, um pilar do estado de direito, trouxe não só a violência, como expôs o pior do comportamento humano. Cidadãos comuns, desses que trabalham, reclamam da corrupção dos políticos e não têm ficha policial, foram flagrados saqueando lojas ao lado de bandidos, para obter bens de consumo como fogões, televisões, fornos de micro-ondas e telefones celulares.

Para outros cidadãos, amedrontados, prevaleceu o instinto de sobrevivência. Os supermercados ficaram lotados de gente em busca de alimentos e água para trancar-se em casa. Logo que os funcionários abriam as portas, nas primeiras horas da manhã, o enervante trombar de carrinhos nos corredores e a confusão de mãos nas prateleiras para pegar mercadorias tomavam conta do ambiente. Era preciso encher a despensa quanto antes.

Felizmente, as farmácias funcionavam como consolo à falta de atendimento nos postos de saúde. Nem os hotéis se salvaram. A comida podia demorar até três horas para chegar ao quarto e o prato vinha incompleto porque parte das guarnições acabava antes, devido à demanda. Por volta de 20 horas, o hóspede espiava pela janela as ruas onde nem carros passavam. O toque de recolher numa metrópole sitiada já fora dado.

O caos começou a se impor sobre a ordem na manhã da sexta-feira, dia 3. Um grupo de mulheres de policiais protestava na porta do quartel da PM da cidade de Serra, região metropolitana de Vitória. Uma das líderes do movimento, a mulher de um capitão, que não se identifica, contou que os maridos reclamam das condições de trabalho. Segundo ela, faltam viaturas e equipamentos de proteção, a carga horária é excessiva e há sete anos os policiais não ganham reajuste salarial na escala que reivindicam.

Por meio de grupos nas redes sociais, as mulheres dos policiais espalharam o plano de bloquear a saída dos batalhões. Elas argumentavam que nenhum PM teria coragem de furar o cerco, pois ali poderia estar a mulher dele ou de um colega.

A manifestação ganhou corpo e atraiu políticos adversários do governador Paulo Hartung, do PMDB, que naquele dia se internara no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para retirar um tumor da bexiga, uma cirurgia sem maiores complicações.

Uma das líderes do movimento de mulheres disse que o vereador Cabo Porto, policial militar, mandou entregar lanche e barracas em um acampamento em frente ao quartel. Porto é filiado ao PSB, mesmo partido do ex-governador Renato Casagrande, adversário de Hartung. Casagrande acusa Hartung de sucatear a segurança pública com corte de verbas. Hartung, que governa um estado depauperado pela crise econômica e pelo tombo da Petrobras, diz que gasta com responsabilidade e não dá muita corda para negociação com sindicalistas.

A notícia do sumiço da polícia chegou rápido aos bandidos. Sem demora, e por ironia, eles atacaram primeiro os condomínios da região onde moram policiais em Serra, que já foi uma das cidades mais violentas do país. Atiraram no transformador de energia na rua do edifício Fragata para agir na escuridão.

Ainda fardado e sem saber da greve, um soldado da PM deparou com o grupo armado quando chegava em casa. Ele caiu da moto, mas conseguiu sacar a pistola para atirar nos "ratos", nome que a PM capixaba dá aos traficantes das favelas. Os moradores dos 300 apartamentos entraram em pânico. Na noite seguinte, mais de 20 bandidos com pistolas e facas voltaram a atacar, mas os policiais que moram no prédio se prepararam para confronto.

Convocaram os moradores civis para ajudar na segurança e montaram uma barricada na rua. O síndico Waldison Pimentel Júnior, de 34 anos, achou que precisava de mais reforço. Contratou quatro seguranças particulares armados ao custo diário de R$ 800, A brigada ganhou fama na região para dissuadir os marginais, mas a onda de saques e homicídios espraiou por toda a região metropolitana de Vitória e pelo interior do estado.

Num espaço de 12 horas no domingo, uma equipe de peritos recebeu 16 cadáveres no Instituto Médico-Legal de Vitória, mas havia no prédio somente quatro mesas para fazer as necropsias. Em situações normais, o ritmo é de sete a dez mortos por dia e nem todos são casos de homicídio – há vítimas de acidentes de trânsito ou de afogamento, por exemplo.

O ritmo seguiria acelerado até o final da semana. Sem a escolta da PM para protegê-los, policiais civis seguiam assustados até as favelas para recolher corpos. Pelo caminho, viam os saques nas lojas, escutavam os tiroteios e, quando dava, arriscavam fazer uma prisão.

Peritos ouvidos por ÉPOCA disseram que boa parte dos 121 mortos -entre sábado, dia 4, e sexta-feira, dia 10 tinha sinais de crime de execução: morreram com tiros disparados a curta distância. Podem ser vítimas da briga entre traficantes ou de grupos de extermínio que envolvam até mesmo policiais.

No Espírito Santo, o tráfico de drogas não é consolidado nas mãos de grandes facções e não há territórios sob domínio dessas organizações, onde a polícia não entra, como acontece no Rio de Janeiro. Sem policiamento, esses pequenos bandos ficaram à vontade para acertos de contas com inimigos e para roubar com tranquilidade.

Na noite da segunda-feira, dia 6, ao lado do ministro da Defesa, Raul Jungmann, o vice-governador César Coinage anunciou que 1.200 homens do Exército e da Força Nacional de Segurança garantiam a paz nas ruas no lugar da Polícia Militar.

Não havia diálogo entre o governo e as associações de policiais. Assim que amanheceu, o empresário Thiago Bezerra, de 36 anos, ficou à espera da tropa militar na Avenida Central, em Serra, onde possui uma loja de artigos esportivos e uma distribuidora de peças de celulares.

Esperava um sinal de segurança para abrir. Não se via ninguém na avenida sempre apinhada de gente e com vagas de estacionamento disputadas a tapa. "Isto aqui lembra Chernobyl", disse, em referência à cidade ucraniana que virou cidade-fantasma após o acidente em uma usina nuclear em 1986. Para azar de Thiago, seu tipo de comércio é o alvo preferencial dos saqueadores que surgiram com a greve da PM. São em geral jovens envolvidos com o tráfico de drogas, que estão em busca de dinheiro, mas também de roupas de marca, tênis, celulares, relógios e computadores para ostentar.

Thiago fechou as portas, dispensou os oito funcionários e instalou tapumes para evitar arrombamento. Mas pensou que não seria proteção suficiente. Corria pela cidade que os criminosos estavam roubando carros e caminhonetes nas ruas e lançavam os veículos contra a fachada de lojas. Nem porta de ferro aguenta um impacto desses.

O serralheiro Wildson de Oliveira perdeu a conta de quantas foram derrubadas dessa forma pelos bandidos. Ele lamentava a violência, mas lucrou com a situação, pois cobra RS 1.500 para substituir cada lâmina de metal retorcida. Thiago pensou e decidiu montar barricadas com três caçambas cheias de entulho em frente ao comércio, colocadas próximas ao meio-fio. Gastou R$ 2 mil no esquema de proteção.

Outros comerciantes da região adotaram a mesma estratégia. Também contrataram seguranças privados, homens que trabalham assustados com toda a razão. Parecia que a qualquer momento um bando de homens armados poderia surgir de alguma direção da Avenida Central. Cada carro que passava levantava a suspeita de um novo ataque. Logo vinha o pensamento para onde fugir, se todas as portas estão fechadas.

As notícias de roubos chegavam sem parar pelas mensagens de celular. Parece que acabaram de assaltar um supermercado a poucos quilômetros dali. "Eu me sinto num filme de terror. Nem pude ir à igreja", diz Antônio Augusto Pinto, proprietário de imóveis comerciais. Até quinta-feira, mais de 300 lojas haviam sido saqueadas, um prejuízo estimado em RS 25 milhões, segundo a Federação do Comércio local.

Na cidade vizinha de Cariacica, as lixeiras transbordavam nas calçadas por causa da interrupção na coleta. Desviando da sujeira, as pessoas andavam apressadas com as compras em sacos plásticos para estocar em casa. Nas raras lanchonetes abertas, clientes recontavam histórias do terror na noite de domingo. "Eram gangues de moleques em motos que trocavam tiros e invadiam lojas", diz Mariene Cesconetto, funcionária de uma das lojas.

Em uma cena capturada por um morador, cerca de 50 motos saem de uma rua próxima a uma favela e se dispersam em ataques a estabelecimentos comerciais. A lanchonete onde Marlene trabalha abriu as portas na manhã de quarta-feira, dia 8, mas fecharia antes do anoitecer.

No dia anterior, homens da Força Nacional avisaram que poderia ficar aberta até tarde. Caiu a noite, nenhum guarda apareceu e os comerciantes ouviram tiros. Decidiram fechar rápido. Na quarta-feira, após percorrer por cinco horas a região metropolitana de Vitória, a reportagem de ÉPOCA só encontrou um jipe e uma viatura do Exército por volta de 13h30. Os homens passaram com fuzis a pronto emprego e pistolas engatilhadas. Ao sumir de vista, a patrulha provocou uma sensação de desamparo, como se deixasse para trás uma cidade desprotegida.

Estava claro que nem os poucos policiais a serviço estavam seguros. No meio da tarde de quarta-feira, no cemitério de Serra, foi enterrado o corpo do policial civil Mário Marcelo de Albuquerque, de 44 anos, baleado ao tentar prender assaltantes em Colatina, no norte do estado. Ele deixou a mulher e dois filhos ainda crianças. Marcelinho trabalhava na Delegacia de Homicídios de Vitória.

Em suas investigações, mantinha contatos diários com o pessoal do IML. Os peritos que o conheciam tão bem se negaram a fazer a necrópsia no corpo. Alguns acostumados a carnificinas choraram. Foi preciso arranjar um voluntário fora da rede de amigos. O velório reuniu sindicalistas da Polícia Civil que apoiam a greve da PM.

A Constituição proíbe que policiais militares façam greve. Primeiro porque a força armada é a garantia da ordem, uma força de dissuasão essencial para manter o cumprimento da lei. Como se viu na semana passada, sua simples presença inibe comportamentos pouco civilizados.

Em segundo lugar, policiais têm a licença para portar armas, o que os coloca em uma posição de franca vantagem para negociar. Diante da ilegalidade de eles mesmos se recusarem a trabalhar, a estratégia de usar as mulheres foi um artifício por vezes ridículo, mas eficaz.

Nenhuma das mulheres assumia a frente da negociação para não se identificar, prejudicar o marido e dificultar negociações. Na falta de liderança única, cada acampamento funcionava a sua maneira. Alguns preferiam música alta e clima de festa, para a revolta dos que são contrários à greve. Em outros, as manifestantes rezavam, evitavam brigas e choravam diante do risco de o PM grevista ser expulso. Em alguns, mulheres e policiais ameaçavam quem chegava perto.

Em todos havia estrutura de lanches, refrigerantes e uma tomada para carregar o celular. O governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, classificou a greve como uma "chantagem". Disse que a paralisação era planejada para o Carnaval, mas foi antecipada porque ele foi internado. Segundo Hartung, os policiais militares tiveram correção salarial nos últimos sete anos em percentuais que variaram de 38% a 52%. Na noite de quinta-feira, enquanto o governador dava uma entrevista sobre a greve, ouvia-se um panelaço em vários bairros da região metropolitana de Vitória.

Irredutíveis, os dois lados só começaram a negociar na terça-feira, quarto dia da greve. Policiais e esposas criticaram o comandante da corporação, coronel Laércio Oliveira, por sua postura, considerada comedida, durante o primeiro encontro de negociação. Laércio foi destituído do comando em seguida pelo secretário de Segurança, André Garcia.

Após uma reunião de 11 horas, que começou na noite de quinta-feira e só terminou na madrugada de sexta-feira, o acordo falhou. As mulheres alojadas na porta dos quartéis pediam ao governo um inimaginável aumento salarial de 43% e anistia para os policiais pelos dias que ficaram sem trabalhar.

O governo se recusou a conceder qualquer reajuste, por falta de dinheiro. Ofereceu apresentar um cronograma para promoções e estudar a carga de trabalho, entre outras coisas. Não houve acordo. Na sexta-feira, o governo endureceu e anunciou o indiciamento de 703 cabos, soldados e subtenentes que participaram do movimento, além de cortes de salários e expulsões.

Sétimo dia da greve, a sexta-feira amanheceu novamente sem ônibus nas ruas. Alguns motoristas que tentaram deixar a garagem foram ameaçados de morte. Na madrugada anterior, o dirigente do sindicato dos rodoviários, Walace Belmiro Fernaziari, morreu baleado em Guarapari, o que só aumentou o temor em voltar ao trabalho. Sem transporte público, as ruas do centro de Vitória continuaram vazias.

O comércio mais uma vez não abriu. Já começaram a faltar dinheiro nos caixas eletrônicos e mercadorias nos supermercados. O Exército aumenta cada vez mais o número de soldados em ação. Os militares já são vistos em várias partes da região metropolitana. Mais de 3 mil deverão estar nas ruas até o fim de semana. A presença das Forças Armadas reduziu o número de homicídios, mas na cidade silenciosa ainda se ouve o comboio de sirenes da Polícia Civil que sai para recolher corpos. Algumas poucas lojas e restaurantes voltaram a abrir.

O padrão da greve no Espírito Santo é um perigo. No final da semana passada, um movimento de mulheres de policiais começou no Rio de Janeiro. Era muito reduzido – em apenas cinco de 100 batalhões policiais tiveram dificuldades para sair. Mas o risco de que esse tipo de levante se espalhe é real e precisa ser levado a sério. E preciso que os governos consigam impedir a ação de corporações que se sobrepõem ao interesse público.

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