Raymundo Costa E Rosângela Bittar
No momento em que parcela da população pede a volta dos militares, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), general Sérgio Westphalen Etchegoyen, não hesita para responder: "As Forças Armadas têm hoje uma noção perfeitamente clara do seu papel e da grandeza do Brasil", diz. "O Brasil não é um país que dependa das Forças Armadas para progredir".
Integrante de uma família há três gerações no Exército, o general está convencido de que a saída para a atual crise se dará "por dentro do sistema político". As instituições, segundo ele, estão suficientemente amadurecidas para isso.
Um dado importante do amadurecimento das instituições, para Etchegoyen, é que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tentou o terceiro mandato, e se houvesse tentado, provavelmente não teria conseguido.
Encarregado de suprir o presidente da República de informações e análises estratégicas, o general mantém um olhar atento a tudo o que acontece no país, do embate do Ministério Público com o Congresso aos grupos que protestam com violência. "A violência tira a legitimidade da manifestação política". A aprovação da anistia ao caixa dois, entende, seria o mesmo que abrir a "caixa de Pandora", por isso os políticos, de sensores afiados, recuaram.
Abaixo, os principais trechos da entrevista, realizada na manhã de ontem, um dia após os violentos protestos contra a PEC do teto de gastos na Esplanada dos Ministérios:
Valor: O senhor acha que as instituições, no Brasil, estão fragilizadas e correm risco?
Sérgio Westphalen Etchegoyen: Não é a minha opinião. Nós temos que olhar para a história do Brasil, vamos pegar três momentos de ruptura: 1964, 1992 e 2016. Não vou entrar no mérito de 1964, não estou discutindo isso. Os elementos comuns a esses três anos são povo na rua, a imprensa que reverberava o que uma parte da população queria, e esse conjunto outorgou às Forças Armadas uma legitimidade que elas constitucionalmente não tinham para fazer a ruptura. As Forças Armadas aceitaram aquela legitimidade porque nós não tínhamos instituições. Ou porque não se percebia que as instituições fossem tão fortes.
E a ruptura de 1992 e 2016?
Etchegoyen: Em 1992, novamente povo na rua, estamos todos lembrados dos caras-pintadas, tivemos imprensa reverberando mais uma vez, e esse conjunto foi a quem tinha legitimidade, o Congresso, pedir o julgamento do presidente da República. Isso nós amadurecemos em 28 anos.
São processos de amadurecimento da sociedade como um todo, e aí se incluem as Forças Armadas, nem se foi buscar as Forças Armadas, nem as Forças Armadas se apresentaram como atores legítimos. Em 2016 a coisa se complicou um pouquinho mais. Tivemos povo na rua, toda a mídia reverberando, e esse conjunto foi de novo a quem tinha legitimidade para afastar a presidente que era o Congresso.
E por que complicou?
Etchegoyen: Apareceu um fato novo, um complicador em relação a 1992: a presidente vinha de um dos maiores partidos, uma belíssima base parlamentar, no poder há mais de 13 anos, um partido articulado, com um discurso original, bonito, que empolgou o Brasil. Consequentemente houve um choque maior entre o pró-impeachment e o anti-impeachment. Esse choque gerou conflitos jurídicos.
O conjunto sociedade, imprensa, Congresso foi a quem tinha legitimidade para sanar os conflitos: o Supremo Tribunal Federal. Então nós tivemos uma busca sempre da fonte da legitimidade para sanar os momentos de ruptura que tivemos. As instituições ficaram incólumes em todos esses momentos. Eu acho que nós evoluímos muito institucionalmente. E esse é o lado bom da crise que nós vivemos.
Tem lado bom?
Etchegoyen: Por que estou dizendo que é o lado bom? Porque a crise é de muito tempo, uma porção de coisas se acumularam agora, inclusive os erros do passados, voluntarismos econômicos, enfim, uma percepção anacrônica da economia e tudo isso. Essa crise, se nós perguntarmos para qualquer brasileiro o que tem que ser feito, as respostas seriam reforma da Previdência, reforma política, reforma trabalhista, reforma tributária. Rediscutir algumas questões da Constituição de 1988, pois ela também tem participação. Agora nenhuma reforma dessas, mesmo que trocássemos a Constituição inteira, nada vai funcionar se não tivermos instituições fortes.
O senhor está dizendo que as instituições estão não só funcionando como funcionando bem?
Etchegoyen: Eu posso até dizer "ah, o deputado tal, mas o Senado, a tal decisão do STF". Está bem, está muito bem. Vamos achar que algumas delas a população não concorde, eu não concorde. Mas qual delas não foi acatada? Qual delas gerou desobediência civil? Então nós temos um momento privilegiado da nossa história.
Mas há erros no processo.
Etchegoyen: Nós não vamos virar a nação mais isenta de erros do mundo de hoje para amanhã. Perguntaram certa vez ao marechal Cordeiro de Farias por que ele não aderiu no primeiro momento ao movimento de 1964. Ele respondeu [que não aderiu logo] porque nunca acreditou que era possível queimar etapas no amadurecimento sócio-político de uma Nação. Nós amadurecemos.
"A Abin faz trabalho de inteligência. Mas inteligência de Estado… não vai saber endereço e CPF do black bloc"
A preocupação com as instituições em 2016 não decorre do fato de que as investigações da Lava-Jato devem atingir a metade do Congresso Nacional?
Etchegoyen: Não é só o Congresso. É o sistema político. As campanhas não elegeram só deputados e senadores. Elegeram vereadores, prefeitos, governadores, deputados estaduais.
O sistema político entrou em colapso?
Etchegoyen: Não acredito que haverá um colapso do sistema político. O Brasil vai enfrentar isso, e para isso nós vamos ter que fortalecer as instituições e enfrentar o que tem que ser enfrentado. Da forma como tem que ser enfrentado.
Há uma parcela da população, minoritária, que tem insistido em pedir a volta dos militares.
Etchegoyen: As Forças Armadas têm hoje uma noção perfeitamente clara do seu papel e da grandeza do Brasil. O Brasil não é um país que dependa das Forças Armadas para progredir.
Não há risco, desejo, pedidos, nada?
Etchegoyen: É um assunto recorrente, absolutamente anacrônico. Vamos imaginar o seguinte: nos últimos 30 anos, qual foi a vez que as Forças Armadas foram fator de instabilidade?
Houve quebra-quebra na manifestação contra a PEC do teto. O GSI mapeia esses grupos?
Etchegoyen: Não, esse é um problema da competência da polícia. Não temos competência policial judiciária para fazer investigação. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) faz trabalho de inteligência. Mas inteligência de Estado, a Abin não é o órgão que vai descer para saber endereço e CPF do black bloc.
Mas a Abin manuseia essas informações.
Etchegoyen: Ela pode ter essas informações, mas ela integra as informações de todos os órgãos que têm competência. Por exemplo: inteligência policial é uma competência das polícias. No nosso caso a relação mais óbvia é a Polícia Federal. Inteligência fiscal é uma competência da Receita Federal. E outras coisas são dados comuns, abertos, como contratação de ônibus, movimentos de aeronaves, que a gente trabalha em função de identificar tendência. Nossa ação é identificar o que possa ser ameaça à segurança institucional. Entre essas ameaças estão perturbação da ordem pública, criminalidade, terrorismo, sabotagem.
As manifestações contra a PEC do teto já começaram violentas, ao contrário de 2013.
Etchegoyen: Essa começou violenta. Se a gente deslegitimar a manifestação do "Fora Temer", vamos deslegitimando a do "Fora Dilma". A manifestação contra o governo é legítima, senão vou deslegitimar todas as outras. O que não é legítimo é que, no meio dessas manifestações, ou aceitem grupos, não sei qual a dinâmica de cada grupo, ou alguns grupos se achem no direito de fazer o que aconteceu ontem [carros virados e incendiados, quebra dos vidros da Catedral, destruição nos Ministérios da Educação e do Planejamento].
O que ocorreu ontem foi manifestação política?
Etchegoyen: O que aconteceu ontem foi violência em estado puro. E a violência é a antipolítica, é a negação da política.
O senhor identificou grupos específicos?
Etchegoyen: Isso é um grupo que veio pra cá para fazer isso. Essas pessoas tiveram que vir, comer… Alguém pagou isso. Alguém soube quem e onde recrutar e alguém financiou esta logística. Pode até ser local, mas alguém soube onde e como recrutar. Claramente. Não brotou. Não foi geração espontânea. O que é muito mais importante é identificar quem banca isso. Quem recrutar sempre vai ter.
Quem banca?
Etchegoyen: Quem vai saber é o governo do Distrito Federal, a Polícia Federal, inteligência.
Esses movimentos de ocupação de escola, invasão da Assembleia do Rio, protesto violento na frente do Congresso partem dos mesmos grupos?
Etchegoyen: Não necessariamente os mesmos grupos, mas têm os mesmos interesses e muitos se identificam. Tem protestos no Rio de Janeiro que são compreensíveis. O sujeito não recebe o salário, não tem dinheiro ou recebe parcela. Essa tragédia que nós estamos acompanhando no Rio. Não tem necessariamente um grupo por trás para instigar aquilo. Agora ocupação de escola, fazia tempo que o movimento estudantil não tinha tanta energia como tem agora. Enquanto os grupos estavam bem alimentados com os financiamentos, viveu-se em paz com o governo.
Há um temor de que as manifestações como as do Rio tenham um efeito dominó e atinjam outros Estados?
Etchegoyen: Ainda não contagiou. Rio Grande do Sul é outro estado em que as manifestações são exacerbadas. Alguém vai ter que pagar essa conta. O problema é descobrir quem gerou a conta. A insatisfação, a revolta acabam sendo de quem está pagando a conta e não necessariamente de quem gerou a conta.
A saída então está por dentro do sistema político?
Etchegoyen: Fora da política é um não dá para imaginar uma solução.
Estamos assistindo a um conflito entre os poderes que pode dificultar essa saída. O Ministério Público contra o Congresso…
Etchegoyen: O Ministério Público não é poder, né?
Não era, mas ganhou tanto poder que se destaca.
Etchegoyen: Continua não sendo. Não sei se o tamanho da violência [contra o Ministério Público] é o que está sendo vendido. Não se disse: se acontecer o abuso eles vão ser julgados pela câmara de vereadores da cidade onde trabalham. Ou seja, manteve-se o processo penal, com todos os recursos. Estou tentando entender em que isso modifica a liturgia jurídica e a autonomia do Ministério Público.
Gravar conversas do presidente da República é crime contra a segurança nacional?
Etchegoyen: Os crimes contra a segurança nacional caducaram, estão praticamente em desuso, não é que caducaram, a Lei de Segurança Nacional é antiga. Gravar o presidente da República é de outro código.
Que código?
Etchegoyen: O código da ética. Das boas relações entre autoridades do Estado. É outro código. É o código moral que as pessoas têm que ter e entender. Gravar o presidente da República, gravar ministros…
"Faça-se a crítica que se quiser fazer ao ex-presidente Lula, ele não tentou o terceiro mandato"
Usar a gravação para um projeto político pessoal?
Etchegoyen: Usar para o que for. Seja para um projeto pessoal, seja para, lá na frente, proteger-se de alguma forma. Quando o presidente da República me nomeou ministro de Estado, e provavelmente a minha relação com ele era muito parecida com a relação dele com o ministro da Cultura, muito tênue, o presidente me deu um cheque em branco com a confiança dele.
O presidente nunca veio aqui para ver o que eu assino ou deixo de assinar, o que eu deixo de fazer. No momento em que eu achar que aquele cheque tem algum vício, eu volto a ele para dizer "muito obrigado senhor presidente". Façam um exercício de história recente: qual foi a saída de ministro em que aconteceu isto? E quantas nós tivemos mais traumáticas do que essa e nenhum ministro saiu fazendo isso? Então não é uma coisa trivial.
O presidente da República sendo gravado por um ministro que declara que gravou para criar algum lastro probatório. Em seguida diz: "no entanto, quando eu falei com o presidente da República, eu conduzi a conversa para que ele não produzisse provas contra si". Ou a primeira afirmação não é verdadeira ou a segunda não é verdadeira. Ou ele não se deu conta da contradição que estava vivendo. Um pouquinho de lógica é importante para entender o cenário.
Então gravar o presidente da República é de uma gravidade, uma coisa que eu nunca vi na minha vida, eu gosto de história, não me lembro disso. Particularmente se feita por um cidadão que vem de uma carreira de Estado, está em outro código. Está no código da hierarquia de valores que cada um faz quando aceita determinados desafios.
O presidente disse que pediria ao senhor um projeto para instalar um sistema de gravação de suas audiências. Como está?
Etchegoyen: Nós estamos buscando diversas soluções para o presidente. Seja protegê-lo de gravações, seja gravar o que ele quiser que seja gravado. Nós estamos vendo as soluções tecnológicas, já testamos algumas, funcionam. Funcionam em determinadas circunstâncias, tem que ver o resto. Até coisas mais simplórias: uma tecnologia que impeça gravação pode prejudicar um aparelho de surdez, por exemplo.
Há muitas tecnologias. Estamos vendo, comparando e vamos oferecer ao presidente. Ele ainda não decidiu nada. Nós temos que saber até que momento determinadas coisas que se tratam nesse nível de autoridades fazem parte de razões de Estado, são segredos de Estado.
São confidênciais.
Etchegoyen: Acontece que a nossa Lei de Informação não ajuda muito isso.
O que muda na geopolítica do continente com a mudança do governo Dilma Rousseff para o governo Michel Temer?
Etchegoyen: O Brasil hoje fica mais à vontade para defender os valores que nós praticamos, que eu não acho que tenham sido tão defendidos externamente, na política externa.
Por exemplo?
Etchegoyen: A Venezuela. Cuba. Hoje temos mais autonomia, mais liberdade e até mais coerência. Faça-se a crítica que se quiser fazer ao ex-presidente Lula, ele não tentou o terceiro mandato. Ele não pensou na perpetuação.
Há controvérsias, general.
Etchegoyen: Mas veja bem: teve sucesso? Teria sucesso? Eu acho que o Brasil tem a maturidade… Ela [a sociedade] impediu muita coisa. Impediu a anistia ao caixa dois, uma porção de coisas.
O senhor está convencido de que o que impediu a anistia ao caixa dois foi o vigor da reação da opinião pública?
Etchegoyen: Claro. A sociedade é um ator político fundamental no Brasil. Tem sido. Os políticos têm os sismógrafos deles que identificam os menores tremores de terra. Eles responderam ao anseio da população. Imagine a caixa de Pandora que se abriria se essa anistia fosse aprovada. Eles perceberam isso.
O que a eleição de Donald Trump muda em relação ao Brasil, em termos estratégicos?
Etchegoyen: O Trump representa um partido que é o mais tradicional dos Estados Unidos. A sigla pela qual é conhecido é GOP (Great Old Party). O Grande Velho Partido. Ele é a tradição americana. O peso do republicano é enorme na política americana. A estrutura. Ele terá algum espaço de manobras para cumprir suas promessas de campanha, mas não tem todas, porque ele tem um partido muito sólido por trás dele, que tem bastante convicção do papel que joga na história dos EUA. Eu acho que mesmo que ele tenha vencido a estrutura de poder do partido, não é uma coisa simples ter tanta liberdade para governar nos EUA a partir dos republicanos.
O que isso muda para o Brasil?
Etchegoyen: Acho que não muda. Ou muda na medida em que a política externa para a Venezuela seja menos tolerante. Existe uma política externa feita à luz do dia e existe um outro braço da política externa que apoia essa – os EUA nunca romperam o diálogo com a Venezuela. O sub-secretário de Estado para assuntos latino-americanos foi à Venezuela, recentemente, três ou quatro vezes.
O senhor poderia explicar um pouco melhor? Muda para o Brasil na medida que muda a relação dos Estados Unidos com a Venezuela?
Etchegoyen: Dependendo da mudança da atitude deles com a Venezuela, nós podemos ter um conflito exacerbado. Na Venezuela. Em Roraima já tem bastante venezuelano. Não é uma coisa que a gente possa escolher: não, não vamos entrar nessa confusão. Eles entram