PAULO FAGUNDES VISENTINI E LEONARDO AUGUSTO PERES
Boletim de Conjuntura – NERINT
No cenário contemporâneo de crise política do Brasil, as manifestações do Comandante do Exército, General Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, evidenciam a falta da questão nacional no espectro político-ideológico. O General Villas Bôas tem afirmado que o Exército atuará exclusivamente com base na Constituição, respeitando os princípios de estabilidade, legalidade e legitimidade.
As Forças Armadas adotam a estratégia de diálogo direto com a sociedade a fim de determinar uma política de Defesa e um projeto nacional para o Brasil frente ao mundo do século XXI. Na atual crise brasileira, algo que chama atenção é a ausência da questão nacional ao longo de todo espectro político-ideológico. Justamente por isso, ganha cada vez mais destaque a posição do Exército Brasileiro por meio das manifestações de seu comandante, o General Eduardo Dias da Costa Villas Bôas. Não apenas foi defendida a legalidade democrática e constitucional (em resposta velada a manifestações extremadas de diversas origens), mas, sobretudo, foi enfatizada a importância da unidade da nação ameaçada.
Isso porque a atual situação de semiparalisia estatal e de divisão política, caos social e retrocesso econômico estaria minando os fundamentos da Nação. O General Villas Bôas foi nomeado Comandante do Exército em 5 de fevereiro de 2015, no início da gestão da então presidente Dilma Rousseff. A Lei Complementar nº 117/2004 definiu as atribuições do Exército sob a supervisão do Comandante, consolidadas pela Lei Complementar nº 136/2010.
Assim, além de supervisionar as atribuições constitucionais do Exército oriundas do art. 142 e de compor o Conselho de Defesa Nacional, o Comandante é responsável por coordenar as três atribuições subsidiárias particulares do Exército: auxiliar a formulação de políticas relativas ao emprego do Poder Militar Terrestre; cooperar na execução de obras de engenharia; e auxiliar na repressão, dentro do território nacional, de delitos que repercutam nacional ou internacionalmente.
Em setembro de 2015, em entrevista ao Correio Braziliense, o General já demonstrava preocupação quanto aos cortes nos gastos com programas do Exército, que considerou prejudiciais à indústria nacional de defesa, que vinha se recuperando, segundo ele, desde o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em especial a partir da elaboração da Estratégia Nacional de Defesa na gestão de Nelson Jobim no Ministério da Defesa.
Esses cortes prejudicariam a capacidade brasileira de projetar seu poder, pois limitariam a capacidade de projeção de força, afetando “um projeto de país”. O Comandante, porém, não atribuiu os cortes a questões políticas, mas a problemas econômicos pelos quais passava o país. Apesar de preocupações com a defasagem salarial nas Forças Armadas e com o tráfico internacional de drogas, Villas Bôas mostrou-se confiante acerca do papel do Exército na crise política pela qual passava então o Brasil:
"O Exército vai cumprir o que a Constituição estabelece. Não cabe a nós sermos protagonistas neste processo. Hoje o Brasil tem instituições muito bem estruturadas, sólidas, funcionando perfeitamente, cumprindo suas tarefas, que dispensam a sociedade de ser tutelada.
Não cabem atalhos no caminho” (Villas Bôas apud Dubeux et al 2015, s/p.). Ironizou, por fim, os manifestantes que clamavam por uma intervenção militar no Brasil: apesar de admitir que o Exército representa “valores” dos quais a sociedade brasileira estava carente, garantiu que prezava pela estabilidade, pela legalidade e pela legitimidade.
Afirmou, pois, que o Exército é uma instituição do Estado e que se rege por suas normas: “O Exército está disciplinado, está coeso, está cumprindo bem o seu papel” (Villas Bôas apud Dubeux et al 2015, s/p). No mês seguinte, Villas Bôas, em entrevista ao jornal Zero Hora, mais uma vez garantiu que não haveria chance de intervenção militar na crise política brasileira, apesar da solicitação de alguns setores políticos.
Reiterou o tripé de estabilidade, legalidade e legitimidade, além de reforçar a unidade do Exército brasileiro e a solidez das instituições do Estado. Finalizou considerando que existe um “ambientalismo fundamentalista” de organizações internacionais que pretendem impedir o aproveitamento da região da Amazônia, especialmente energético, e frisando as lições de sua atuação como adido militar na China, que afirmou ser um país com “sentido de projeto” que o Brasil deve recuperar, por meio de uma renovada “coesão nacional”.
Em visita ao Comando Militar do Nordeste, ainda no mesmo mês, o General afirmou que “o povo não quer os militares de volta. Vivemos em um regime democrático, no qual as instituições funcionam normalmente. O que o povo quer, na realidade, são os valores que ele atribui aos militares: ética, honestidade, honradez, compromisso com a Nação” (Villas Bôas apud Sampaio 2015, s/p). Em novembro de 2015, demitiu o Comandante do Comando Militar do Sul, após este ter se manifestado publicamente a favor da substituição da Presidente da República.
Villas Bôas afirmou que tomou tal decisão em nome da estabilidade e da segurança, indicando que as manifestações do Exército devem ser institucionais. Advertiu que o custeio das atividades do Exército também estava ameaçado, o que poderia levar, inclusive, à sua “desprofissionalização”. Adicionou que o Sisfron também estava ameaçado e concluiu que, apesar de os equipamentos básicos dos soldados brasileiros ainda serem bem desenvolvidos, outros equipamentos estratégicos poderiam ser prejudicados com o corte: mísseis, foguetes, sistemas complexos, artilharia antiaérea.
A jornalista Simone Kafruni destacou a repercussão das afirmações do General de que os cortes orçamentários provocariam “um atraso de 30 a 40 anos na indústria de defesa”. Kafruni os presidentes das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional tanto do Senado, à época o Senador Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB, quanto da Câmara, à época a Deputada Jô Moraes, do PCdoB.
Esta ressaltou a importância estratégica da indústria nacional de defesa: “nós temos dependência da indústria norte-americana para usar até mesmo um GPS, por exemplo” (Moraes apud Kafruni 2015).
O GOVERNO MICHEL TEMER E A CONTINUAÇÃO DA INSTABILIDADE POLÍTICA
No final de 2016, o General foi direto quanto à impossibilidade de volta dos militares ao poder, rotulando de “tresloucados” e de “malucos” aqueles que clamavam por intervenção do Exército. Afirmou que as atribuições do Exército se restringem àquelas previstas constitucionalmente no art. 142 e negou que setores da ativa ou da reserva considerassem qualquer forma de retorno ao poder. Revelou, ainda, sua preocupação com a segurança pública e elogiou o respeito de Michel Temer às instituições e a defesa das Forças Armadas.
Todavia, em março de 2017, o Valor Econômico publicou uma entrevista com o General, que declarou que “somos um país que está à deriva, que não sabe o que pretende ser, o que quer ser e o que deve ser”. Ao falar sobre a crise política no país, explicou sua afirmação sobre “o país à deriva”: “Esse processo que o Brasil vem enfrentando está atingindo nossa essência e nossa identidade. Tem outro componente, que vem de processo histórico recente, das décadas de 70, 80.
Até então, o país tinha identidade forte, sentido de projeto, ideologia de desenvolvimento. Perdeu isso. (…) O interesse público, a sociedade está tão dividida e tem o Estado subordinado a interesses setoriais” (Villas Bôas apud Gugliano 2017, s/p.).
Além dos comentários costumeiros sobre narcotráfico e sobre o Sisfron e a proteção das fronteiras, Villas Bôas abordou, nessa entrevista, dois novos temas que merecem destaque: o processo de paz na Colômbia, acerca do qual demonstrou, ao mesmo tempo, otimismo e preocupação, dada a possibilidade de antigos membros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia se juntarem a outros grupos guerrilheiros e aumentarem as zonas de plantio de coca; e as eleições de 2018, acerca das quais manifestou sua consternação quanto ao surgimento de “candidatos de caráter populista”, traçando paralelos com os Estados Unidos da América de Donald Trump.
Em abril, o General Villas Bôas falou à revista Veja, destacando a credibilidade do Exército e sua importância não apenas pelo zelo à integridade e à soberania do país e pela capacidade de estimular a economia, mas ainda pelo fato de “guardar elementos da nacionalidade”. Esclareceu um momento que caracterizou como “tenso” nas relações com o governo, quando foi sondado acerca da possibilidade de se decretar Estado de Defesa no país. Reforçou os três pilares da atuação do Exército – estabilidade, legalidade, legitimidade – para lembrar que ele age apenas de acordo com a Constituição.
Acerca da atuação internacional do Exército, elogiou a participação brasileira na Missão de Paz da ONU no Haiti e revelou que já há projetos para que o Brasil atue em outras missões semelhantes. Ao apoiar a Operação Lava-Jato, afirmou que “o Brasil vai ter de se repactuar” após todas as denúncias de corrupção. Voltou a alertar quanto à possibilidade de surgimento de um líder populista, e afirmou que não apoia a pré-candidatura à presidência do Deputado Jair Bolsonaro, com quem não tem ligação institucional, esclareceu. Concluiu comentando seu próprio estado de saúde.
No mês de maio, Villas Bôas compareceu a uma reunião com Michel Temer, convocado pelo Ministro da Defesa. Segundo nota do Centro de Comunicação Social do Exército em rede social, debateu-se a conjuntura atual, “foi destacada a estrita observância das Forças Armadas aos ditames constitucionais” (Exército Brasileiro 2017) e o General reforçou os três pilares da atuação do Exército, reafirmando a coesão e a unidade de pensamento entre as Forças Armadas.
A CRISE INSTITUCIONAL E A QUESTÃO NACIONAL
Ainda em maio de 2017, Villas Bôas palestrou na Fundação Fernando Henrique Cardoso, revelando a consternação, o choque e a preocupação do Exército Brasileiro quanto às denúncias contra Michel Temer oriundas de delação do empresário Wesley Batista, dono do frigorífico JBS.
Temer convocara as Forças Armadas para garantir a segurança do Distrito Federal após as manifestações contrárias a ele – sobre isso, Villas Bôas garantiu que o Exército respeitaria a Constituição e garantiria a democracia, acreditando na força da polícia de conter eventuais manifestações que se tornassem violentas.
Demonstrou preocupação quanto aos efeitos da corrupção no país, mas fez a ressalva de que tinha “plena certeza, convicção, de que o País, a nação e as instituições vão ter capacidade de encontrar os caminhos, de buscar essa regeneração necessária e a gente retomar o caminho de crescimento e de evolução” (Villas Bôas apud Weterman 2017, s/p).
Os acontecimentos do Distrito Federal e as denúncias contra Temer motivaram a realização, em 6 de junho, de uma reunião no Quartel-General do Exército entre Villas Bôas e “diversas alas do pensamento político-militar” (DefesaNet 2017). Estavam presentes os generais Alberto Cardoso, Augusto Heleno, Bolívar Goellner e Rocha Paiva, além de outros membros do alto escalão do Exército. Ainda em junho, Villas Bôas concedeu entrevista ao jornal chileno El Mercurio, em que mais uma vez defendeu a constitucionalidade de todos os atos do Exército, inclusive durante as manifestações de maio, quando foi convocado por Temer.
Em 22 de junho de 2017, o General participou de Audiência Pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado. O foco de sua exposição na ocasião foram os projetos estratégicos do Exército, mas relacionou-os à situação conjuntural nacional e mundial: “Não se pensa em defesa num país sem alguma consideração de ordem geopolítica”. Essa foi a ocasião em que lamentou mais francamente a falta de um projeto brasileiro de país, afirmando: “[…] nós perdemos o sentido de projeto nacional e perdemos a ideologia de desenvolvimento […]. E [o Brasil] é um país que está sem rumo. Essa circunstância é perigosa para um país da estatura do Brasil, porque, se fôssemos um país pequeno, poderíamos nos agregar a um projeto de desenvolvimento de um outro país, como ocorre, mas o Brasil não pode fazer isso. O Brasil não tem outra alternativa a não ser potência.
E, quando eu falo potência, não estou dando uma conotação negativa de imperialismo, expansionismo, não. É um país que tem de ter uma densidade muito grande. E acho que a crise é profunda, porque estamos, inclusive – tenho muito medo disso –, perdendo um pouco da identidade nossa, da nossa autoestima, que está se estiolando” (Villas Bôas apud Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional 2017, s/p).
Em julho de 2017, o General concedeu breve entrevista ao Estadão, abordando, novamente, o papel das Forças Armadas na manutenção da estabilidade democrática e a sua preocupação com o corte orçamentário que ameaça os projetos estratégicos do Exército – considerado, por ele próprio, suas principais preocupações. Assim como na audiência no Senado, esclareceu o comentário do “Brasil à deriva”: “Tenho dito que o Brasil é um país sem projeto, um país à deriva, não de agora, mas de algum tempo – quero esclarecer, porque disse em outra entrevista e interpretaram como uma crítica minha ao atual governo.
O Brasil perdeu a coesão social, perdeu o sentido de projeto e a ideologia do desenvolvimento. O País está muito preso ainda a dogmas políticos e ideológicos que não têm capacidade de interpretar o mundo atual, um mundo totalmente interligado, com cadeias econômicas transnacionais” (Villas Bôas apud Domingos 2017, s/p.).
O General concluiu comentando novamente as eleições de 2018, revelando sua esperança quanto ao surgimento de novas lideranças baseadas em novas formas de pensamento. Citou os exemplos de Margaret Thatcher, Primeira-Ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990, Ronald Reagan, Presidente dos Estados Unidos da América entre 1981 e 1989 e Emmanuel Macron, Presidente da França desde 14 de maio de 2017, como exemplos de líderes que surgiram em momentos de crise e revelou sua esperança de que o mesmo aconteça no Brasil em 2018.
AS FORÇAS ARMADAS E A SOCIEDADE
As manifestações do General Villas Bôas não representam apenas sua opinião pessoal ou a posição institucional somente do Exército, mas uma política inteligente das Forças Armadas em geral. Com o fim do Regime Militar, as Forças Armadas promoveram uma avaliação sobre sua atuação nas décadas precedentes e uma reflexão sobre o futuro. Decidiram se retirar aos quartéis e não se envolver em política, observando institucionalmente os ditames constitucionais.
Mesmo com a redução de seu papel na Constituição de 1988, hoje criticada por sua pouca atenção aos temas de soberania, defesa e nação, mantiveram a mesma posição. Depois, houve uma década de cortes financeiros, o quase encerramento de programas tecnológicos e a redução de sua capacidade operacional, embora participassem de diversas missões de paz sob mandato da ONU.
A globalização trouxe ameaças à soberania e o enfraquecimento do Estado, da economia e da própria ideia de nação. No início do século XXI, houve uma retomada em termos de recursos e de projetos tecnológicos, mas não houve uma concepção estratégica nova na área de Defesa e de Projeto de Nação (que foi bastante contraditório). O período neoliberal (Collor e Cardoso) e o seguinte, liderado pelo Partido dos Trabalhadores (Lula e Dilma), dividiram a sociedade, em um quadro marcado pela crise econômica mundial e brasileira. Com a divisão ideológica atingindo os limites do absurdo e da irracionalidade, e os acontecimentos que conduziram ao impeachment da presidente Dilma (mais a instabilidade do governo de seu sucessor), as Forças Armadas mantiveram uma postura equilibrada e institucional.
Há algum tempo que elas haviam decidido estabelecer um diálogo com a sociedade (via cursos e atividades) para demonstrar a importância da Defesa. Em lugar de ceder a facções políticas, elas buscaram um vínculo direto com a sociedade, visto que a “sociedade civil organizada” não conseguiu articular uma redefinição da Defesa e do projeto de nação.
Além disso, também se aproximaram da academia e buscaram desenvolver estudos conjuntos e a construção de uma nova concepção de Defesa para o mundo do século XXI, bem como retomar o histórico projeto de consolidação da nação brasileira. Nesse contexto, as palavras do General Villas Bôas representam apenas a ponta de um iceberg, institucionalizado e amadurecido.