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China acelera a consolidação de ‘soft power’ global

James Kynge, Lucy Hornby e Jamil Anderlini

No mapa de Pequim no Google há uma zona vazia, uma área urbana vizinha ao conjunto de edificações da liderança do Partido Comunista, onde alguns poucos edifícios têm nomes. Visitando pessoalmente o local, a aura do anonimato é confirmada.

Há guardas uniformizados postados nos imponentes acessos, para checar os carros oficiais que entram e saem. Mas não há placas de identificação; a única informação consta de placas de metal que contêm o nome da rua e o número da edificação.

O maior desses prédios sem nome fica na rua Fuyou, 135, e abriga os escritórios da Frente Unida do Departamento do Trabalho do Partido Comunista Chinês, mais conhecida só como Frente Unida. Essa é a sede da iniciativa mundial de "soft power" chinesa, uma missão multifacetada, mas predominantemente confidencial, que Xi Jinping, o presidente da China, que esta semana foi confirmado no cargo até pelo menos 2022, elevou a um dos objetivos primordiais de seu governo.

O edifício, que tem cerca de 200 metros de comprimento no nível da rua, representa a escala da ambição chinesa. Conquistar "corações e mentes" internamente e no exterior por meio do trabalho da Frente Unida é crucial para concretizar o "grande rejuvenescimento do povo chinês", disse Xi.

No entanto, o tipo de poder exercido pelos quadros do partido, que trabalham por trás da fachada neoclássica da rua Fuyou, 135, pode ser considerado quase tudo, exceto "soft". Uma investigação do "Financial Times" sobre as operações da Frente Unida em vários países mostra um movimento fomentado pelo pináculo do poder chinês para seduzir, cooptar ou atacar grupos e pessoas bem definidas.

Seus objetivos gerais são conquistar apoio para a agenda política chinesa, acumular influência no exterior e coletar informações cruciais. A Frente Unida recusou pedidos de entrevista para esta reportagem e seu site apresenta informações escassas. Mas um manual de formação de seus quadros, obtido pelo "Financial Times", define de modo abrangente e detalhado a missão global da organização em linguagem que visa tanto seduzir como intimidar.

O documento incentiva os quadros a serem gentis e inclusivos ao tentar "unir todas as forças que podem ser unidas" em todo o mundo. Mas também os instrui a serem implacáveis na construção de uma "Grande Muralha de Ferro" contra "forças inimigas no exterior" que têm como intenção dividir o território da China ou tolher seu desenvolvimento.

"Forças inimigas no exterior não querem ver a ascensão da China e muitas delas veem nosso país como ameaça e rival potenciais e, por isso, empregam mil estratagemas e centenas de estratégias para nos frustrar e reprimir", segundo o livro intitulado "Cartilha da Frente Unida da China". "A Frente Unida… é uma grande arma mágica que pode nos livrar de 10 mil problemas para que conquistemos a vitória", acrescenta outra passagem do livro, que identifica seus autores e o conselho editorial como funcionários de alto nível da Frente Unida.

Em rara coletiva de imprensa neste mês, Zhang Yijiong, vice-ministro-executivo da Frente Unida, disse: "Se o povo chinês quiser ser poderoso e concretizar o grande rejuvenescimento da nação chinesa, então – sob a liderança do Partido Comunista – precisamos compreender melhor e plenamente o uso desta 'arma mágica'". Sun Chunlan, a diretora da Frente Unida, foi mantida nesta semana no novo Politburo recém-selecionado (leia A mulher mais poderosa da China).

A estrutura da organização demonstra a extraordinária amplitude de sua missão. Suas nove agências cobrem quase todas as áreas nas quais o Partido Comunista identifica ameaças a seu poder. A terceira agência, por exemplo, é responsável por atividades em Hong Kong, Macau, Taiwan e entre os 60 milhões de chineses que vivem no exterior, em mais de 180 países. A segunda agência lida com religião.

A sétima e a nona são responsáveis, respectivamente, pelo Tibete e por Xinjiang, duas áreas fronteiriças rebeldes que abrigam as minorias tibetana e uigure, respectivamente. Merriden Varrall, diretor do Instituto Lowy, um think-tank australiano, diz que, sob Xi, houve um nítido fortalecimento do foco no "soft power" chinês.

A anterior ênfase em tranquilizar outros povos de que a ascensão chinesa seria pacífica está dando lugar a uma linha de ação mais enfática. "Houve uma mudança radical na ênfase desde que Xi Jinping assumiu", diz Varrall. "Ainda existe a sensação de que tranquilizar os outros é importante, mas há também a sensação de que a China deve ditar como é percebida e que o mundo é tendencioso contra a China".

A dura abordagem da Frente Unida é evidente em seu atual antagonismo quanto à futura reencarnação do 14º Dalai Lama, o exilado líder espiritual tibetano de 82 anos, que Pequim critica como sendo a personificação de uma tendência separatista que deseja extrair o Tibete do controle chinês.

A tradição determina que, após a morte de um Dalai Lama, o alto sacerdócio do Lamaísmo tibetano busca identificar sua reencarnação mediante uma série de sinais proféticos, que os levam à sua alma renascida numa criança. Os líderes do budismo tibetano vivem em exílio com o Dalai Lama em Dharamsala, no norte da Índia, ampliando as perspectivas de que a reencarnação de seu líder possa ser encontrada em algum lugar fora das fronteiras da China.

Pequim está alarmada. A última coisa que quer é que o homem que qualificou de "separatista" e "um lobo em pele de cordeiro" seja reencarnado num território que o governo não controla. A Frente Unida está encarregada de conceber uma solução. Até agora, o plano, segundo autoridades, é que o Partido Comunista – oficialmente ateu – supervisione, ele mesmo, a busca da reencarnação do líder religioso dentro do território chinês.

Em parte para isso, ajudou a criar um banco de dados de mais de 1,3 mil "Budas vivos" oficialmente aprovados no território do Tibete, que serão convocados quando chegar o momento de endossar a escolha de Pequim. "A reencarnação de todos os Budas vivos tem de ser aprovada pelo governo central chinês", diz Renqingluobum, uma autoridade etnicamente tibetana e dirigente da Associação de Intercâmbio Internacional de Cultura do Tibet, uma afiliada da Frente Unida.

"Se [o Dalai Lama] resolver encontrar a reencarnação em determinado lugar fora do Tibet, os tibetanos vão se perguntar de que tipo de reencarnação se trata, e as massas pensarão que a religião deve ser falsa, vazia e imaginária, afinal", disse Renqingluobu em recente visita a Londres.

O governo tibetano no exílio critica o plano "absurdo", acrescentando, em declaração de Dharamsala: "Se os chineses acreditam verdadeiramente que o 14º Dalai Lama [o atual] é um 'grande separatista propenso a destruir a unidade da terra natal', para que procurar outro?"

Aventurar-se na esfera da metafísica pode parecer anti-intuitivo para os agentes ateus da Frente Unida, mas todas as organizações religiosas nacionais da China são patrocinadas pelo trabalho da Frente Unida.

Entre elas estão a Associação Budista da China, a Associação Taoísta da China, a Associação Islâmica da China, a Associação Patriótica Católica Chinesa e o Movimento Patriótico Three-Self (Protestante).

Essa lista significa que a Frente Unida também encabeça as delicadas negociações para reparar as difíceis relações da China com o Vaticano, de acordo com diplomatas. O principal ponto de atrito é a insistência de Pequim de que todas as religiões praticadas na China têm de encarar o Partido Comunista como sua autoridade máxima – posição que, no catolicismo, é ocupada pelo papa.

Os dois lados manobram há mais de uma década, principalmente em segredo, para encontrar um denominador comum. Houve sinais de avanço nos últimos anos, com ambos os lados concordando em reconhecer a nomeação de cinco novos bispos chineses em 2015 e 2016.

Porém, pelo menos oficialmente, a Frente Unida continua resistente. "Não podemos, absolutamente, permitir que qualquer grupo ou indivíduo religioso interfira nas religiões do nosso país", diz o livro da Frente Unida.

Para Pequim, a crescente diversidade social, após quase 40 anos de reformas econômicas, destaca o valor da Frente Unida em manter fidelidade e apoio para um círculo que transcende o dos fiéis comunistas tradicionais. Sucessivos dirigentes elogiaram a Frente Unida, mas nenhum o fez mais do que Xi, que adotou várias iniciativas, em 2014 e 2015, para elevar o status e o poder da organização. Xi expandiu o âmbito do trabalho da Frente Unida, acrescentando a nona agência para o trabalho em Xinjiang, o que significa que a organização supervisiona atualmente a violenta luta travada pela China para combater o separatismo na região islâmica.

Ele também decretou a fundação de um Pequeno Grupo Dirigente exclusivamente voltado para atividades da Frente Unida, o que significa uma linha direta de comando entre o Politburo e a Frente Unida.

Mas talvez a medida mais importante de Xi até o momento foi designar a Frente Unida como um movimento para "o partido inteiro". Isso significou um aumento acentuado desde 2015 no número de delegados da Frente Unida nomeados para cargos nos primeiros escalões do partido e do governo.

Outra consequência foi que quase todas as embaixadas chinesas incluem atualmente uma equipe formalmente encarregada do trabalho da Frente Unida, de acordo com autoridades que pediram para não ter seus nomes divulgados.

Isso impulsionou os esforços da Frente Unida de cortejar os chineses no exterior. Embora mais de 80% dos cerca de 60 milhões de chineses no exterior tenham assumido a cidadania de mais de 180 países anfitriões, eles ainda são encarados como solo fértil por Pequim. "A unidade dos chineses no país exige a unidade dos filhos e filhas dos chineses no exterior", diz o manual.

A cartilha recomenda uma série de formas pelas quais os agentes da Frente Unida devem conquistar o apoio dos chineses no exterior. Algumas são sentimentais, que enfatizam os laços "de carne e sangue" com a terra natal. Outras são ideológicas, focadas em uma participação conjunta no "grande rejuvenescimento do povo chinês".

Mas são, principalmente, materiais, voltadas para o fornecimento de dinheiro ou outros recursos a grupos e indivíduos chineses seletos no exterior, considerados valiosos para a causa de Pequim. Uma acadêmica chinesa baseados no Reino Unido, que participou de vários eventos da Frente Unida, relata que a experiência começa com um convite para um banquete ou recepção, geralmente de uma de uma série de "associações de amizade", que trabalham sob a bandeira da Frente Unida para celebrar datas do calendário chinês.

Discursos patrióticos preparam o clima enquanto estudantes de destaque – especialmente cientistas – são cortejados para que retornem à China com "presentes" na forma de bolsas de estudo e salários, acrescenta essa acadêmica. Esses salários são bancados por uma série de organizações subsidiárias da Frente Unida, como a Fundação para o Desenvolvimento dos Acadêmicos Chineses que Estudaram no Exterior, de acordo com documentos da fundação.

A generosidade, porém, pode vir com obrigações. Na Austrália, a Associação dos Estudantes e Acadêmicos Chineses (CSSA, na sigla em inglês) atua para atender as finalidades políticas da embaixada chinesa local, segundo afirmam Alex Joske e Wu Lebao, alunos da Australian National University. Um exemplo: quando o premiê chinês, Li Keqiang, visitou Camberra este ano, a CSSA colocou nas ruas centenas de estudantes chineses para abafar manifestantes contrários a China, escreveram Joske e Wu em um blog. Certamente, de forma alguma todos os estudantes chineses na Austrália e outros países ocidentais se veem como agentes do "soft power".

No entanto, acadêmicos chineses e australianos têm notado um aumento da militância pró-Pequim. Feng Chongyi, professor da University of Technology Sydney, diz que a influência exercida por Pequim sobre as associações chinesas na Austrália cresceu consideravelmente desde o fim da década de 90. "Minha avaliação é que eles controlam quase todas as associações comunitárias e a maioria da mídia em língua chinesa, e agora eles estão entrando no setor universitário", afirma o professor Feng.

Longe dessas operações de base, um alvo maior é a influência política sobre o Ocidente. O manual didático observa em tom de aprovação o sucesso dos candidatos chineses nas eleições de Toronto, no Canadá. Em 2003, seis foram eleitos entre 25 candidatos, mas em 2006 esse número subiu para dez eleitos entre 44 candidatos, segundo o manual.

"Devemos procurar trabalhar com essas pessoas e grupos que estão em um nível relativamente elevado, operar no coração da sociedade e manter perspectivas de avanço", diz o manual. Às vezes, porém, a busca por influência política pode dar errado. A agência nacional de inteligência da Nova Zelândia investigou um membro do Parlamento nascido na China, Jian Yang, em conexão com a década e meia que ele passou em importantes faculdades militares chinesas.

O "Financial Times" foi informado de que Yang, um agente da Frente Unida desde 1994, passou mais de dez anos estudando e lecionando em instituições de elite, inclusive no principal instituto de linguística do setor de inteligência voltado para militares. Entre 2014 e 2016, ele integrou um comitê seleto do governo da Nova Zelândia para assuntos externos, defesa e comércio.

Anne-Marie Brady, professora da Universidade de Canterbury, Nova Zelândia, disse que a crescente influência política da China precisa ser levada a sério. Observando que Canberra pretende aprovar uma lei contra atividades de interferência estrangeira, ela também pede que Wellington crie uma comissão para investigar o lobby político chinês.

Em 2010, o diretor da agência nacional de inteligência do Canadá alertou que vários ministros de governos de províncias do país e funcionários do governo eram "agentes de influência" de governos estrangeiros, especialmente da China. Meses atrás, a Austrália disse estar preocupada com a influência das operações de inteligência chinesas e campanhas secretas sobre a política do país.

Mas com o tempo esses reveses poderão se mostrar contratempos temporários na projeção da marca da China de um "soft power" forte em todo o mundo. "No começo, o governo chinês falava de cultura – Ópera de Pequim, acrobacia – como 'soft power'", diz Li Xiguang, diretor do Centro Internacional de Estudos de Comunicação da Universidade Tsinghua.

"Quando Xi Jinping assumiu o poder, ele se mostrou totalmente diferente dos líderes anteriores. Ele disse que a China deveria ter uma autoconfiança total em nossa cultura, no caminho do desenvolvimento, no sistema político e na nossa sabedoria". O aumento da importância e do poder da Frente Unida proporcionado por Xi Jinping, sugere que Pequim pode não estar disposta a abrandar seus esforços.

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