Folha de SP 08/08
Cenário de parcas opções agravado pela crise dos abutres
leva elite argentina a abraçar nova promessa
A força arregimentada por Bush pai na 1ª Guerra do Golfo contou com reforço simbólico. Nove anos após o traumático conflito nas Malvinas e o estranhamento com potências ocidentais, a Argentina remetia uma fragata ao esforço de constranger o apetite de Saddam Hussein por sua vizinhança.
Com o gesto, Buenos Aires alinhava-se a Washington em "relações carnais". Mediante uma economia dolarizada, a Argentina sintonizara-se à banca multilateral e a Wall Street. Nada disso impediu o esfacelamento do peso em 2001 e o subsequente calote. Envenenou-se o entusiasmo pela Alca. Desmoronou o "realismo periférico".
O olhar estratégico argentino orientou-se então ao Brasil. Já se jogara pá de cal sobre velhos antagonismos geopolíticos com a renúncia conjunta nos anos 90 ao desenvolvimento de armas nucleares. Trocas comerciais sob o guarda-chuva do Mercosul se expandiam. No Brasil de Lula, o novo antiamericanismo argentino tinha muro de arrimo.
No crescente intercâmbio entre os dois grandes do Cone Sul, a escala da economia brasileira sombreou a do vizinho. Todo o "hype" em torno dos Brics e da "brasilmania" fez brotar sentimento dúbio nos círculos decisórios argentinos. Dor de cotovelo pela condição coadjuvante na América do Sul. Reconforto na certeza de que, atrelada à reluzente estrela econômica do Brasil, o país arremeteria.
Nessa luz, compreende-se toda ciclotímica afirmação da "individualidade" argentina.
Discursos sobre os benefícios da integração, mas catimba na liberalização multissetorial do comércio com o Brasil e nas negociações Mercosul-União Europeia.
A "brasildependência" converteu-se num pesadelo em Buenos Aires. Comércio bilateral declinante. Diminuição do influxo de investimentos produtivos. Certeza de não contar com o vizinho num quadro de liquidez escassa. Daí, a percepção de que os reflexos do subdesempenho econômico brasileiro dos últimos quatro anos são mais fortes na Argentina do que os efeitos do marasmo argentino sobre o Brasil.
Esse cenário de parcas opções –agravado pela crise dos abutres– leva a elite argentina a abraçar nova promessa de "relações carnais". Dessa vez, o parceiro é a China.
Pequim e Buenos Aires agora mantêm acordo para a operação de troca (currency swap) de US$ 11 bilhões entre seus bancos centrais. Disso emerge um "curralito comercial". A Argentina pode pagar importações chinesas em yuan.
A China rapidamente tornou-se o segundo maior parceiro comercial argentino.
O Banco de Desenvolvimento da China está injetando US$ 8 bilhões em hidrelétricas e na rede ferroviária. Os chineses entram com tudo na reserva de Vaca Muerta, na Patagônia, onde supostamente encontram-se os maiores depósitos não-convencionais de petróleo e gás do planeta –em que muitos enxergam o "último trem argentino rumo à prosperidade".
Com os EUA desinteressados e demonizados e o Brasil envolto em seus próprios dilemas, a Argentina é cada vez mais atraída ao campo gravitacional chinês.
Avanço chinês na Argentina
EDITORIAL O ESTADÃO
Costuma-se atribuir à crise econômica da Argentina a significativa queda das exportações do Brasil àquele país verificada nos últimos tempos. Embora seja uma boa explicação, trata-se apenas de uma parte do problema, não só porque a crise parece atingir majoritariamente a importação de produtos brasileiros, como porque a China está tomando cada vez mais o espaço comercial antes ocupado pelo Brasil no mercado vizinho.
O valor dos embarques da China para a Argentina dobrou em seis anos, segundo o jornal Valor, que usou estatísticas oficiais argentinas. A China já é o segundo maior exportador para a Argentina, com 15% do total, atrás do Brasil, com 26%.
Por conta da crise, a Argentina reduziu suas importações globais em 8% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo intervalo de 2013, mas a compra de produtos chineses cresceu 2% naquele período. Mesmo as vendas do Nafta, bloco integrado por Estados Unidos, Canadá e México, cresceram 9%. Já as importações argentinas de produtos do Mercosul caíram 18%. A queda das vendas de produtos brasileiros foi ainda maior, atingindo 20,4%. Somente em julho passado, o recuo foi de 33,5%.
É ao Brasil, portanto, que cabe a maior parte da conta do ajuste argentino, pois o vizinho é um dos principais mercados consumidores dos produtos brasileiros, especialmente veículos e autopeças – cujas vendas para a Argentina caíram espantosos 57,6% no mês passado, apesar da renovação do acordo automotivo muito vantajoso para os argentinos.
A China entra no mercado argentino basicamente com bens de capital (máquinas e equipamentos) e bens intermediários (manufaturados ou matérias-primas usados na produção de outros bens). A Argentina ampliou em cerca de 10% a importação desses produtos chineses, enquanto reduziu as importações do Mercosul em 21% no primeiro caso e em 7% no segundo.
Essa realidade diz respeito tanto à situação precária da Argentina e à agressividade chinesa quanto à falta de competitividade brasileira e à teimosia do governo petista – que se mantém apegado a compromissos políticos e ideológicos com um vizinho que não se constrange em afrontar as regras do Mercosul quando elas não atendem a seus interesses.
Ao mesmo tempo que impõe diversos empecilhos para os negócios com os brasileiros e para que o Mercosul deslanche, a Argentina, no mês passado, transformou a China em "aliado integral", categoria que até então era reservada apenas ao Brasil.
Na recente visita que fez a Buenos Aires, o presidente chinês, Xi Jinping, firmou um acordo para financiar a reforma do sistema de transportes da Argentina – que receberá trens chineses – e para construir duas hidrelétricas, tudo a um custo de US$ 75 bilhões. Além disso, ofereceu uma linha de crédito para importar produtos agrícolas argentinos, no valor de US$ 11 bilhões.
São esses investimentos e essa capacidade de financiamento, com os quais o Brasil não pode competir, que garantem à China condições privilegiadas quando negocia a venda de seus produtos à Argentina. Em alguns casos, os contratos de investimento chineses embutem a contrapartida da compra de seus produtos. Dispondo de mais de US$ 3 trilhões em reservas, a China está confortável para oferecer financiamento aos argentinos, que enfrentam crescente escassez de dólares para fazer seus negócios.
Mas não é apenas o poder financeiro chinês que está fazendo a diferença. Some-se a ele a incapacidade do governo petista de tratar a relação com a Argentina de forma pragmática. Os erros da atual administração resultaram na excessiva dependência do mercado argentino, especialmente para a venda de veículos e autopeças. Sem observar os reais interesses nacionais, o governo petista vem cedendo a todas as chantagens argentinas nas negociações comerciais, pois acredita que, como "líder regional", deve ser benevolente com seus parceiros de Mercosul. Enquanto isso, os chineses estão cada vez mais à vontade na Argentina.
Comentário DefesaNet
A China tem trabalhando ativamente nos campos de influência brasileira. Ao tornar a América Latina e África seus focos, e a inação do Itamaraty, ou até mais a subserviência dos últimos governos braisleiros está levando ao cerco chinês ao Brasil.
O editor