Jorge Serrão
JP News
16 Março 2022
O Cabo Anselmo morreu. Notícia falsa que foi veiculada, muitas vezes, ao longo dos últimos 60 anos, agora é verdadeira. Apenas alguns amigos muito próximos tiveram a notícia oficial da morte de José Anselmo dos Santos — que viveu dezenas de anos na clandestinidade, desde 1º de abril de 1964. Infelizmente, fui um deles. Anselmo faleceu no sítio em que se refugiava, às 22h de terça (15 de março).
Mal súbito, potencializado por velhice, cuidado deficiente com a saúde, sofrimento e solidão. Nascido em 13 de fevereiro de 1942, na cidade sergipana de Itaporanga D’ajuda, Anselmo se definia como “um homem que não existe”. Sobreviveu 50 anos sem uma identidade oficial. Marinheiro de primeira classe nos idos pré-64, entrou de gaiato no navio ideológico da história mal contada do Brasil. O comuno-sindicalismo o transformou no mítico Cabo Anselmo.
A malandragem criou a versão atualizada do também marinheiro João Cândido – aquele também transformado no “Almirante Negro”, no começo do século, para afrontar os esquemas militares. Anselmo foi o autor do discurso inflamado no dia 25 de março de 1964, que acirrou a indisposição da cúpula das Forças Armadas contra o presidente João Goulart. Ele gerou tanto ódio que foi o cassado número 100 pelo Ato Institucional número 1, baixado pelo governo Castello Branco.
O Cabo foi preso logo depois do golpe de 64, mas conseguiu escapar da cadeia. Exilou-se, primeiro no Uruguai. Tempos depois, Anselmo foi indicado por Leonel Brizola para aprender guerrilha em Cuba, no plano para a futura derrubada dos militares. Os vários anos em que passou na ilha de Fidel Castro, preparando-se para voltar ao Brasil como guerrilheiro-revolucionário, lhe criaram uma consciência sobre os perigos dos regimes autoritários.
Quando voltou ao Brasil, no começo da década de 70, logo foi capturado pelo Departamento da Ordem Política Social (DOPS) e acabou se tornando um agente infiltrado dentro da guerrilha comunista, o que lhe rendeu o xingamento de “traidor da esquerda”. Anselmo sempre relatou que não teve como “optar”. Ou colaborava com a repressão ao terrorismo no Brasil ou “desapareceria para sempre”. A desilusão com o regime cubano e o pragmatismo da sobrevivência o fizeram mudar de lado ideológico.
A decisão de Anselmo o matou do mesmo jeito. Sumiram até com a certidão de nascimento dele, no cartório da cidadezinha sergipana de Itaporanga d´Ajuda. Perdeu a identidade, que só recentemente recuperou com a ajuda de amigos de infância que encontraram documentos na igreja de uma cidade vizinha e lhe ajudaram a fazer um documento oficial de identificação. Nesse meio tempo, transformou-se e nunca deixou de ser um autoexilado. Virou o Homem Que Não Existe. Quando todos já lhe davam como desaparecido, na década de 80, um policial da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury o “aconselhou” que seria muito bom dar uma entrevista a um jornalista “amigo” para contar sua versão da história.
A aparição de Anselmo ao veterano repórter Octávio Ribeiro, o Pena Branca, lhe foi fatal. Curioso que Anselmo cometeria o mesmo erro anos depois. Tentando novamente se reabilitar historicamente, reapareceu para outros dois jornalistas: Percival de Souza e Pedro Bial. A exposição inútil, para rearranjar uma história que não tinha mais como ser consertada, acabou obrigando-o a “sumir” de novo. Só reapareceu uns dez anos depois, para pedir que sua anistia fosse reconhecida. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, nas gestões do PT, do MDB e de Jair Bolsonaro, não cumpriu a obrigação legal e moral de reconhecer sua anistia.
O Estado brasileiro ignorou a anistia prevista no art. 8º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, que é regulamentada pela Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. José Anselmo dos Santos entrou com seu pedido em 1º de abril de 2004. Mas nunca viu a cor da indenização. Anselmo morreu reclamando que a Comissão de Anistia agiu com rigor seletivo e ideológico contra ele. Cabo Anselmo foi “justiçado” pela burocracia.
A minha história pessoal com Anselmo é, no mínimo, curiosa. Desde que me tornei jornalista, em 1983, sonhei em encontrar e entrevistar o personagem. O desejo virou realidade por acidente. Aconteceu no meio da tarde do dia 4 de abril de 2007. Por coincidência, no dia do meu aniversário de 41 anos. Ganhei de presente jornalístico a entrevista com a figura histórica, que nem pensava que encontraria um dia.
O encontro foi pessoal. Cara a cara. Aconteceu em um apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Foi na casa do delegado Carlos Alberto Augusto – o Carteira Preta, ex-agente do DOPS e um dos raríssimos amigos e protetores do Cabo Anselmo. Passei a tarde e o começo da noite de 4 de abril juntos. Tornamo-nos amigos. Era um leitor e escritor voraz. No meu blog, Alerta Total, ele publicou dezenas de artigos com o codinome de “Arlindo Montenegro”.
É importante fazer justiça histórica ao ser humano José Anselmo. O Marinheiro de primeira classe, que tem a patente de cabo só na lenda histórica, tentou desfazer alguns mitos sobre si próprio. Sempre jurou que nunca foi assassino. Negou os crimes que a esquerda tradicionalmente lhe atribuiu. Principalmente o famoso massacre da Granja São Bento ou Timbi, em janeiro de 1973. O Cabo Anselmo assegurou que “nunca esteve presente em qualquer cenário de violência e morte”.
Lembrava que os documentos da repressão (os arquivos secretos que não são abertos) podem ter esta prova. Anselmo contou que nunca foi um agente contratado e remunerado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, da Operação Bandeirantes. Sobrevivia com dinheiro repassado pela esquerda. Revelou até que, em algumas ocasiões, foi agente da repressão que foi aos pontos de encontro receber o dinheiro vindo da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), grupo de esquerda do qual fazia parte e foi acusado de trair.
Sua versão da história pode ser conhecida no livro “Cabo Anselmo – Minha Verdade, Autobiografia” (Editora Matrix, 2015, 255 páginas). José Anselmo dos Santos foi, provavelmente, o único remanescente da luta armada que permanecia na clandestinidade, longe da família, sem trabalho fixo, obrigado constantemente a mudar de endereço e sem condições de desfrutar de uma velhice normal e tranquila. Anselmo foi sepultado na tarde deste 16 de março de 2022, por coincidência irônica da vida, no cemitério de Montenegro (apelido que usava), em Jundiaí (interior de SP). Escrevo esse texto como um adeus a um amigo que vi, pela última vez pessoalmente, aqui nos estúdios da Jovem Pan, na última entrevista que ele concedeu, ao programa Direto ao Ponto, de Augusto Nunes, em 10 de maio de 2021. Descanse em paz, Anselmo. Sic transit Gloria Mundi! (Toda glória do mundo é transitória!)