DUDA TEIXEIRA
O capixaba Ricardo Ferraço (PMDB-ES) assumiu a presidência da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado em fevereiro de 2013 com uma promessa. "A comissão tinha de deixar de ser um cartório, que simplesmente homologava o nome das indicações presidenciais para as missões diplomáticas", diz Ferraço. Com ele no comando, a comissão tornou-se um contraponto às políticas seguidas pelo Palácio Itamaraty. Apesar de pertencer a um partido da base governista, Ferraço tem sido crítico e severo com o Executivo. Recentemente, por exemplo, a indicação para o próximo embaixador brasileiro em La Paz, capital da Bolívia. foi "sobrestada", ou seja, tirada da pauta. O posto continuará vago até que Ferraço e os outros membros da comissão recebam esclarecimentos convincentes sobre as relações bilaterais com o país do presidente Evo Morales. O senador de 50 anos concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
VEJA – Por que o Senado brasileiro deve se preocupar com os problemas internos de países vizinhos, como a Venezuela?
Ferraço – No caso especifico da Venezuela, os problemas que ela enfrenta também são nossos porque se trata de um membro do MERCOSUL. Uma das cláusulas mais importantes do bloco econômico é aquela que prioriza a democracia e a liberdade de expressão. O governo brasileiro não pode se fazer de morto quando esses valores são suprimidos.
É uma questão de autodefesa. Ao promovermos a democracia dentro do MERCOSUL, também apontamos aquilo que não queremos que aconteça dentro de nosso próprio país. Nossa sociedade tem de estar muito vigilante e alerta. Quando vemos a oposição venezuelana sendo massacrada, violentada e invadida em suas prerrogativas, não podemos ser coniventes. Temos de dizer ao mundo e aos nossos parceiros o que consideramos relevante e declarar o que queremos para nós mesmos.
"Vivemos um apagão em política externa. Dilma não lidera e também não delega”
VEJA – O senhor encaminhou à Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao chanceler Luiz Alberto Figueiredo uma carta da deputada venezuelana Maria Corina Machado, que foi agredida e ameaçada de morte. Recebeu alguma resposta?
Ferraço – Nenhuma. Maria Corina teve seu mandato cassado por fazer oposição ao presidente venezuelano Nicolás Maduro, sem direito a defesa. Foi um rito sumário. Maduro foi eleito democraticamente, mas ao longo de seu mandato já deixou evidente que está levando seu país para uma ditadura. É algo que claramente vai na contramão dos princípios expressos na Constituição brasileira, que devemos defender. Apesar disso, Figueiredo não me respondeu. Ele foi enviado à Venezuela para tentar um acordo entre o governo e a oposição, mas não conseguiu chegar a consenso algum. O Brasil perdeu qualquer capacidade de influenciar a situação depois que a UNASUL se colocou ao lado de Maduro. Isso tirou a nossa neutralidade e, com ela, também a credibilidade.
VEJA – Em agosto, o senador boliviano Roger Pinto Molina, após passar mais de um ano na embaixada brasileira em La Paz, fugiu para o Brasil com a ajuda do diplomata Eduardo Sabóia. O que o episódio revela sobre a política externa do governo Dilma Rousseff?
Ferraço – O Brasil decidiu dar asilo político ao senador após analisar detalhadamente seu caso. Ele era um opositor do presidente Evo Morales e estava sendo perseguido por denunciar as relações entre altas autoridades do governo boliviano e narcotraficantes. Esse tema é da maior gravidade para a nossa sociedade. O presidente Morales publicamente estimula a produção de coca em território boliviano, e todos sabemos quanto a droga e a cocaína importada da Bolívia infernizam a vida dos brasileiros.
No meu estado, o Espírito Santo, cerca de 80% dos homicídios têm relação com o tráfico e o consumo de drogas. A concessão do asilo foi uma atitude soberana e unilateral de um Estado. Mas o senador não pôde sair da embaixada em La Paz porque Morales se recusou a dar um salvo-conduto para que ele viesse ao Brasil. Recentemente, revelou-se que a chancelaria brasileira o teria procurado, ainda na embaixada onde estava refugiado, para propor que abrisse mão do asilo político e fosse para outro país. Essa proposta contrariou todo o histórico de princípios e valores que regem nossa diplomacia.
“Os contratos entre empresas e outros países foram forjados muito mais em torno de relações pessoais do que em termos estáveis e previsíveis. Não têm muita garantia. É algo extremamente perigoso. O risco de calote está posto!!”
VEJA – Quando Roger Pinto chegou a Corumbá, o senhor usou o ¡atinho de um empresário amigo para levá-lo a Brasília. Há um conflito de interesses aí?
Ferraço – Eu não solicitei esse avião para meu uso privado, mas para uma causa humanitária. Se precisasse, faria de novo.
VEJA – O que leva o governo e o ltamaraty a dar as costas a políticos estrangeiros que sofrem perseguição política, como Maria Corina ou Roger Pinto?
Ferraço – O erro está em submeter a política externa, que deveria buscar os interesses de Estado, a uma política de governo. Mais do que isso, submetê-la aos ditames do partido hegemônico no momento, o PT. Isso explica a assimilação automática de políticas chavistas no Brasil. O debate que está vindo por aí em torno do controle dos meios de comunicação é algo que já vimos na Venezuela e na Argentina.
Aqui, há aqueles que querem reproduzir a mesma coisa, mas estou seguro de que não encontrarão nenhum espaço no Brasil. São posturas que seguem diretrizes ideológicas e que não podem ir adiante, sob o risco de contrariar nossos interesses nacionais e enfraquecer nossa democracia.
VEJA – De que ideologia o senhor está falando?
Ferraço – Do bolivarianismo. O governo brasileiro está fazendo uma opção pelo que há de mais atrasado e populista. A América Latina está dividida em duas, como no antigo Tratado de Tordesilhas. O lado do Pacífico, que inclui países como Colômbia, Peru, Chile e México, adotou o que há de mais dinâmico em economia e desfrutou muita prosperidade com isso. Eles fizeram vários acordos comerciais, incentivaram a indústria e ampliaram as oportunidades para seus empreendedores, gerando mais empregos.
Do lado do Atlântico estão os países mais atrasados, como Venezuela, Bolívia e Argentina. Eles seguiram caminhos que já sabemos que não levarão a lugar algum. O comércio está estagnado e seus governantes, mesmo tendo sido eleitos pelo voto direto, têm forte inclinação para violar princípios civilizatórios. Estão todos a caminho de tornar-se ditaduras. É com eles que o Brasil tem preferido fazer alianças, por afinidade ideológica ou por causa de relações pessoais com os presidentes Nicolás Maduro e Evo Morales.
VEJA – Fora isso, não existe nenhuma outra orientação?
Ferraço – Vivemos um apagão em política externa. Estamos em um voo cego. Nossa presidente não lidera e também não delega poderes. A ausência de estratégia a médio e a longo prazo é um fato absolutamente verdadeiro. Tudo o que vemos é uma sucessão de improvisos. Não se sabe aonde se quer chegar. Os dois últimos presidentes, Lula e Fernando Henrique, tinham aptidão para o tema, uma característica que falta à nossa presidente.
Em raros momentos da história brasileira a chancelaria foi tão pouco prestigiada. Tradicionalmente, o Itamaraty, abre um concurso público anual para 100 diplomatas. No último, houve apenas dezoito vagas. Há uma contenção orçamentária muito grande, um esvaziamento. O Itamaraty se apequenou. Essa instituição nunca teve tão pouco prestígio como no atual governo. É uma pena, pois é lá que estão alguns dos mais experientes e capacitados funcionários públicos que temos.
VEJA – As novas gerações de diplomatas do Itamaraty também comungam da ideologia bolivariana?
Ferraço –Muitos estão tendo de se submeter a essa lógica para manter o cargo e o salário. Vários têm medo de expressar o que pensam. Participei recentemente dos debates para a montagem do Livro Branco da Política Externa Brasileira. Foi uma tentativa de fazer um balanço com vários acadêmicos e profissionais de diversas entidades sobre a nossa política externa.
Queríamos dar um viés estratégico à coisa. Mas já percebi que essa discussão não chegará ao governo. O Itamaraty está totalmente fechado. O que se comenta é que há um chanceler de direito, o Luiz Alberto Figueiredo, e um chanceler de fato, o Marco Aurélio Garcia, assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República.
VEJA – Marco Aurélio Garcia continua dando as cartas na política externa do governo petista?
Ferraço – Não tenho nenhuma dúvida. Na abertura e no encerramento dos debates para o Livro Branco ficou claro que havia ali um comando duplo. Figueiredo abriu os trabalhos. Garcia os fechou, coroando toda a discussão.
“0 PMDB é sócio de um modelo esgotado. Dilma conta com uma base ampla, mas não tem mais projeto. Ninguém governa um país assim. Nos últimos anos, o que se fez foi varrer para debaixo do tapete as transformações de que o país precisa”
VEJA – Em fevereiro, o senhor pediu informações sobre o contrato do BNDES que financiou o Porto de Mariel, em Cuba. Solicitou dados como o valor já pago por Cuba, as garantias e a expectativa de retorno financeiro. Conseguiu descobrir algo?
Ferraço – Não tive retorno algum. Não acho errado investir no exterior, para que companhias nacionais tenham presença na região. A questão central continua sendo por que fizeram isso sob sigilo. A transparência é uma boa conselheira em qualquer circunstância da atividade pública. Por que uma operação dessas deve ficar em segredo se estamos todos convencidos de que é importante para o Brasil e para a América Latina? A recusa do governo em dar informações nesse caso é indefensável.
VEJA – Há muitas empresas brasileiras aproveitando-se das boas relações com o governo para ter seus projetos no exterior aprovados com mais facilidade?
Ferraço – Acho que sim, mas acho também que atualmente essas companhias estão bem pouco à vontade. A Venezuela tem uma dívida superior a 3 bilhões de reais com firmas brasileiras que apostaram nessas relações. O nível de inadimplência está fora da curva, e vários segmentos empresariais brasileiros já se retiraram dessas negociações, pois não estão dispostos a se submeter a suas regras e riscos. Esses países têm problemas com o câmbio, e as reservas internacionais estão muito baixas.
Os contratos entre empresas e outros países foram forjados muito mais em torno de relações pessoais do que em termos estáveis e previsíveis. Por causa disso, não têm muita garantia. Isso é extremamente perigoso. O risco de calote está posto. Dilma não dá nenhum valor à política externa. Ela crê que pode resolver tudo só olhando para dentro das nossas fronteiras.
VEJA – Fernando Henrique Cardoso também viajou para Cuba quando era presidente e apertou a mão de Fidel Castro. Qual a diferença para as relações que Lula e Dilma estabeleceram com o regime cubano?
Frraço – Quando Fernando Henrique foi a Havana, acredito que ele estava flertando com um certo saudosismo do tempo em que militou na esquerda, durante a ditadura. Mas ele não transigia quanto ao respeito aos direitos humanos. Também soube guiar a política externa segundo os interesses do Estado, e não de seu partido.
Com Lula e Dilma, as viagens tinham outro viés. Em 2007, quando o Brasil deportou os boxeadores cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, ficou claro que se tratava de uma orientação partidária. Esse tipo de coisa não existiu no governo FHC.
VEJA – O senhor é do PMDB, um partido aliado ao governo Dilma. Já recebeu alguma pressão para amenizar o tom?
Ferraço – Nunca recebi coerção, tampouco aceitaria isso. Dentro do meu partido, também tenho sido um crítico. Acredito que o PMDB é sócio de um modelo esgotado. Na última convenção, votei contra a aliança com o PT. O presidencialismo de coalizão só funciona quando se tem uma base constituída em torno de um projeto.
Esse requisito é fundamental para aprovar as emendas constitucionais que interessam ao país. Dilma conta com uma base ampla, mas não tem mais um projeto. Ninguém governa um país assim. Nos últimos anos, o que se fez foi varrer para debaixo do tapete as transformações de que o pais precisava para ganhar competitividade internacional. O Brasil hoje carece de um projeto de nação. ?